Pescadores
de Ílhavo. Meados do século XIX
Colecção
Palhares. MMI
Ílhavo e a sua região de que
tanto se fala como centro difusor de cultura marítima terão deixado, por via
directa ou indirecta marcas na cultura marítima
do nosso litoral.
Habituámo-nos desde cedo, quando
visitámos zonas marítimas, para pesquisa etno-linguística, desde estudante
universitária, a ouvir tecer algumas considerações relativas a Ílhavo e aos habitantes
locais, mal se apercebiam que era oriunda da citada região.
E começámos a capacitar-nos de
que onde existia uma bateira existiu um
ílhavo ou há vestígios, pelo menos,
da passagem de um ílhavo.
Cremos mesmo que por Ílhavo tem
havido um interesse crescente pela grande faina dos ílhavos no litoral, não tendo tido a exposição temporária, «A
Diáspora dos ílhavos», no MMI, de 8 de Agosto de a 31 de Outubro de 2007 a aceitação
desejada pela maioria dos interessados nesta grande questão da identidade local.
Virando costas à Laguna, por
inóspita que estava, os ílhavos, com
suas artes ainda algo rudimentares, fixaram-se junto ao mar. Aberta
definitivamente a barra em 1808, vieram instalar-se no areal a que chamaram
Costa Nova (arrais Luís Barreto, igualmente conhecido por Luís da Bernarda) com
as companhas da xávega. Tão exímios se
tornaram no manejo destas artes estes emigrantes da borda do mar, refere
Senos da Fonseca, que o desejo de partir
em busca de locais onde o peixe fosse mais abundante se tornou evidente
(Ílhavo – Ensaio Monográfico – Séc. X ao Séc. XX, 2007, Papiro Editora.
Porto, 2007, pp. 174 a 181).
A fundação da Cova e Gala por ílhavos tem-se apresentado um caso mais
polémico, porque se tem baseado, de livro em livro, em afirmações não
confirmadas por registos paroquiais estudados ultimamente pelo pesquisador
Hermínio de Freitas Nunes.
A presença ou a passagem de ílhavos por Palheiros de Mira, também Raquel Soeiro de Brito a comprovou (Palheiros de
Mira – Formação e declínio de um aglomerado de pescadores. Edição
Fac-similada, Cemar. Praia de Mira, 2009, pp. 21 e 36), ao consultar
Registos Paroquiais, concluindo que entre
1835 e 1870 as populações originárias de Ílhavo foram as que mais contribuíram
para a formação do povoado.
Mas a sua característica de nómadas da beira-mar fez com que não
parassem. Pela Nazaré também andaram, tendo contribuído para a sua formação. Na
pequena monografia Nazaré e o seu
concelho, Raúl de Carvalho, (Lisboa,
1966, p. 21), depois de algumas alusões aos pescadores de Ílhavo,
referencia que estes, após terem
abandonado as suas terras, em busca de melhor vida e mais fartura de peixe,
constituíram os primitivos povoadores da Nazaré.
E Raúl Brandão, no capítulo
dedicado à Nazaré de Os Pescadores
(Edições Estúdios Cor, Lda. Lisboa, s.d., p. 160), afirma
pela boca de Joaquim Lobo, que aquela
gente viera de Ílhavo e recorda ainda que foram os cagaréus que povoaram os
melhores e mais piscosos pontos da costa, vindo pelo litoral abaixo, aos dois e
três barquinhos juntos, até ao Algarve.
Também tivemos conhecimento da
influência que os referidos povos exerceram na Ericeira, visto que Joana Lopes
Alves, ao ocupar-se da rede do linguado ou tresmalho,
assegura ter sido trazida para a Ericeira
pelos pescadores da Murtosa, que a usavam na sua terra (A linguagem dos pescadores da Ericeira. Junta Distrital de Lisboa. Lisboa, 1965, p. 57).
Mas não ficaram por aí. Também na
Costa da Caparica, associando as pescas estivais de mar a fainas invernosas em
rios e estuários, os ílhavos aí se
instalam por volta de 1770, sendo referido por Helena e Paulo Nuno Lopes (A Safra.
Livros Horizonte, Lda. 1995, p. 57), que no final do séc. XIX, trabalharam na Caparica, na pesca, mais de
setecentas pessoas.
Igualmente Maria Alfreda Cruz ao
ocupar-se do tresmalho, certifica que é conhecido, em Sesimbra, por «redes de
ílhavos» designação que denuncia a sua proveniência (Pesca e Pescadores em Sesimbra. Centro de estudos Geográficos. Lisboa, 1966, p. 54).
Também por finais do século XIX,
continuam a referir Helena e Paulo Nuno Lopes (ob.
cit., p. 57) que os pescadores de
Ílhavo chegam à costa alentejana, para aí trazendo as suas famílias, tendo
vivido aí, em inícios do século XX, quarenta famílias.
Todos os anos chegam ao Tejo umas dezenas de barcos varinos – é o nome
que dão a estas embarcações pequenas e rasteiras, com um mastro e proa
levantada (…). Quando se levanta borrasca encalham o barco nas margens do rio e
abrigam-se à proa, debaixo de um oleado encerado (não haverá aqui hábitos
idênticos?), onde dormem, cozinham e
consertam as redes.
Também emigram para o Tejo barcos «ílhavos», que são maiores e andam à
pesca da sardinha entre o cabo da Roca e o Cabo Espichel. E há muitos
pescadores da Vieira que vão para os campos de Vila Franca e Santarém pescar o
sável. Os da Borda-d’água chamam-lhes «avieiros» – ascendentes que ficariam a
viver nos seus barcos até ao último quartel do século XX.
Francisco Oneto Nunes (Vieira de Leiria
– A História, o Trabalho, a Cultura. Edição da Junta de Freguesia de Vieira
de Leiria, 1993, p.174), baseando-se na informação recolhida nos
registos paroquiais da freguesia de Vieira de Leiria refere que desde 1911 até 1933, os livros de registos
de óbitos indicam o falecimento de 19 indivíduos já de idade avançada, cujos
pais eram naturais de Ílhavo, Mira, Tocha, Quiaios, Figueira da Foz e Lavos. Oneto
Nunes sublinha a existência, em 1790, de
dois barcos de pesca, que habitualmente costumavam pescar nas costas de S.
Jacinto, de fins de Junho até Fevereiro, e que seguiam depois para o Tejo.
Parece que a ida, se bem que
temporária de ílhavos para o Tejo,
começa a ser incontestável, porque registada por alguns documentos e estudiosos.
Também fomos recolhendo alguns
testemunhos orais. Ao entrevistarmos, nos anos 80 do século passado, na
Murtosa, Joaquim Maria Henriques (Raimundo), construtor famoso de embarcações
lagunares, aí nascido em 1909, testemunhou-nos que «algumas vezes se deslocara
com o pai a Peniche, Setúbal, Alcácer do Sal, Vila Franca de Xira, Carregado e
Salvaterra de Magos para a construção de bateiras
que os murtoseiros utilizavam, quando para esses locais iam fazer a safra do
sável».
Também A. A. Baldaque da Silva, a
quem é atribuída uma pesquisa extremamente criteriosa em 1886 (Estado Actual das Pescas em Portugal – A Pesca
Marítima, Fluvial e Lacustre em Todo o Continente do Reino, referido ao ano de
1886. Lisboa, Imprensa Nacional, 1891, pp. 197, 240, 241, 287 e 403),
faz inúmeras referências ao carácter emigrante dos povos da região da Murtosa,
Ílhavo e Aveiro. Ao ocupar-se da rede sardinheira,
afirma que os pescadores ílhavos que
emigraram para Setúbal, lá usaram uma sardinheira (rede de emalhar sardinha),
de menores dimensões. Averiguou também em inquérito directo a que procedeu que trinta barcos ílhavos, tripulados por
450 homens, depois da pesca costeira à tarrafa, iam pelo rio acima para a pesca
do sável. Eram também os pescadores ílhavos que emigravam para a enseada entre
os cabos da Roca e Espichel e aí usavam, nuns barcos com o seu próprio nome, a
rede de cerco volante, designada por tarrafa.
Sobre este barco ílhavo (também conhecido por bateira ílhava), refere-nos que era
um barco de fundo chato, construído nas margens da ria de Aveiro, com um
compartimento fechado à proa, para abrigo de parte da tripulação, com mastro a
meio, aparelhando vela latina de pendão, navegando mais vulgarmente a remos,
movidos por três a quatro homens. Empregam-se
muito na pesca da sardinha, na enseada de Entre cabos da Roca e de Espichel,
durante o inverno, usando a tal rede denominada tarrafa.
É, no entanto, o tresmalho (rede de emalhar formada por três redes sobrepostas) a rede mais
difundida pelos ílhavos, que em grande número emigraram durante a
época do sável para o Douro, Tejo e Sado, continua Baldaque da Silva.
Todas estas citações elencadas
não pretendem ser mais do que um ponto de reflexão.
Ainda há bem pouco tempo, ao
abordarmos o livro Canoas do Tejo de
Luís Sande e Pedro Yglesias de Oliveira (Edição da Câmara Municipal de Cascais,
2009, p. 92), achámos curioso o parágrafo que passamos a transcrever – As bateiras são embarcações pequenas, com
cerca de cinco a seis metros, com uma construção muito simples, que foram
introduzidas no Tejo pelos avieiros, ou cagaréus como eram conhecidos, que eram
comunidades que vieram da zona de Aveiro e se instalaram nas margens do Tejo.
Viviam em pequenas casas palafíticas, construídas em cima de estacas e nas
próprias bateiras. Ainda hoje existem avieiros a viverem nestas condições e a
pescar em embarcações que não têm sequer motor auxiliar.
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E assim se foram expandindo os ílhavos…os ditos colonizadores da areia…–
tínhamos por cá estas notas…outros terão outras… e documentos, para
enriquecer o caudal da diáspora dos ílhavos.
Ílhavo, 21 de Outubro de 2012
Ana Maria Lopes
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2 comentários:
Bom trabalho, que hoje vi publicado no «O Ilhavense»... Vai ser bom para deixarmos de ser só PESCADORES DE BACALHAU e COLONIZADORES MITICOS... Agora é preciso dar profundidade histórica a esta colonização feita pelos nossos antepassado, que apesar de ser geralmente pendular, acabou por deixar uma diaspora ao longo do litoral portugues desde Matosinhos até Isla Cristina no sul de Espanha... Não devemos esquecer que pelo menos em 1443 os nossos antepassados já usavam «enxauegua» e «ssardjnhejra» e que há um documento de 1686 sobre uma reunião em Aveiro, onde é referida a partida de povos da Ria para outros locais do litoral... e, segundo uma publicação de Maria Véstia, já havia migração varina pendular para o Tejo na IDADE MÉDIA....
Antonio Angeja
O texto é muito interessante e fornece informações preciosas. Com efeito, é considerável o número de murtoseiros e outros «marítimos» provenientes da área da ria de Aveiro que já chegam a Alcácer do Sal em fins do sécuo XX. Ainda hoje verifiquei, em registo de baptismo de 1881, paróquia de Santa Maria do Castelo (Alcácer do Sal), terem havido moradores num topónimo denominado «praia dos Ílhavos», que já não consta de qualquer carta mas que é bem expressivo quanto à presença destes elementos nortenhos no povoamento do litoral alentejano.
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