Cá, para nós, a festa dos Grandes Veleiros, grandiosa, mesmo com alguns boas perturbações atmosféricas, já acabou. Agora, vem aí a romaria…p’ra te comprar uma flor…
A minha mais antiga recordação desta romaria é uma fotografia, no terraço da minha casa, em que tenho dois anos, com um grande laçarote na cabeça. A armação da festa comprova a data – fins de Setembro de 1946. Vivia no “coração” da romaria.
Outra, bastante mais forte e de que ainda hoje me recordo vivamente, foi a minha integração na procissão, “vestida de anjinho” – a primeira e a única vez. Cá perdurou “o boneco” tirado “à la minuta”, como mandava a tradição. Só que foi uma procissão complicada e agitada, porque durante o seu trajecto, deflagrou um forte incêndio na, à época, Pensão Pardal, na esquina norte da Estrada do Banho.
Alterado o percurso, o susto apoderou-se de todos, crianças, jovens e adultos. As chamas lambiam as outras casas e todos temiam que se propagassem às casas vizinhas. Foi um alvoroço. Postos a par da ocorrência por residentes, lá vieram os Bombeiros de Ílhavo acudir ao sinistro que poderia ter alcançado proporções gigantescas, dado que as casas da proximidade eram palheiros de madeira ressequida.
Depois de tamanha confusão, felizmente sem consequências de maior, lá chegou o “anjinho” assustado, a casa. Na ausência de data na fotografia, lá fiz algumas diligências para situar a ocorrência no ano certo – foi no domingo da Festa de 1951 (in O Ilhavense de 10 de Outubro de 1951).
Naquela idade os meus avós faziam-me as vontadinhas todas e eu lá tinha os meus rituais.
A minha primeira compra era um “chapelinho de papel” muito frágil e gracioso, que habitualmente estavam à venda numa tenda, que montava arraial em frente à Vivenda Quinhas.
Quando chegavam à minha porta, a ti Adelaide Ronca com as flores de papel e ventarolas, e a ti Caçoa, com o baú das doçarias tradicionais, entre as quais sobressaíam os melosos e açucarados suspiros e os bolinhos brancos, logo as boas festeiras tinham em mim uma das primeiras freguesas; uma mão para erguer o moinho à procura do vento, até que zunisse, e logo a outra atascada com doçarias para secar a água que me crescia na boca, só de vê-las.
Seguia-se a visita à Vida de Cristo, em movimento, descrita em voz roufenha, rouca do publicitador, tornada ensurdecedora pela ampliação conferida pelas cornetas do altifalante, que tentavam sobrepor-se ao anúncio das cadeiras voadoras ou da casa do espelhos ou do comboio fantasma, itens do arraial que se iam visitando, vez à vez, até que esgotados na segunda-feira do fim de festa.
Incluída no programa das visitas, não podia faltar uma ida às barracas de loiça de Barcelos, para “puxar” , de um molho de argolas, uma, presa a um fio, que erguia o número correspondente ao prémio, que calhava em sorte.
Tem muita sorte, a menina – comentavam outros forasteiros, com os olhos caídos nas belas peças, vistosas, muito toscas e coloridas que me calhavam. Certo é que eu tirava tanta rifa, que uma ou outra, a insistência fazia com que a sorte caísse para o meu lado. O meu grande prazer residia, mesmo, em escolher uma argola, no meio do tal molho delas, puxar ao calha e ver o que a sorte me reservava. Trazia as figuras todas para casa e dispunha-as à varanda.
Assim ia gozando a festa naquela idade da criancice e inocência.
Os restantes apontamentos fotográficos são bastante mais tardios, de 1960, ano em que as minhas amigas e eu, já espigadotas, no esplendor da nossa juventude, combinámos viver a Senhora da Saúde, à moda antiga. Tinha 16 anos.
Os primeiros sinais da romaria eram dados pela chegada e montagem da armação. Depois, a vinda das primeiras tendas. Mas quando os primeiros moliceiros chegavam do norte e do sul da ria, os norteiros e os matolas e atracavam mesmo aqui pertinho de mim, então a festividade estava próxima.
Experimentámos de tudo um pouco. Depois de um belo passeio num Vouga, estava na hora de começar a reinar: andámos de carrocel, de carrinhos eléctricos, de cadeirinhas voadoras, integrámo-nos nas danças sobre a proa dos moliceiros, subimos aos vistosos e animados coretos, tirámos a sina numa boneca de tecido peludo preto, com uma grande cabeçorra, normalmente em frente do palheiro dos Senhores Moura, apreçámos toda a quinquilharia possível, desde os toscos brinquedos de lata e madeira aos ferros forjados mais elaborados. E o café de “apito”? Eu é que nunca fui amante de café.
Assistimos respeitosamente ao desfile da procissão, apreciámos o fogo de artifício, assustando, conforme podíamos e sabíamos os forasteiros, especados, de olhos pregados no céu.
Foi assim a nossa festa setembrina de 1960, em homenagem à Senhora da Saúde, em que se concentrava grande número de devotos.
Nas belas proas dos moliceiros…
As participantes na folia eram Maria Manuela Vilão, Rosa Maria Moura, Eneida Viana e eu.
E hoje, o que é que temos? A procissão, o fogo de artifício, uma feira infernal e pouco mais. Por vezes, com a intervenção aparatosa da A.S.A.E.
No entanto, ainda se vai passar à Costa-Nova a Senhora da Saúde. Nem gosto, sequer, de ver a casa fechada. Tradição…apesar de já não ser o que era. É a que temos. É para respeitar e tentar transmitir…
Imagens – Arquivo pessoal da autora
Costa-Nova, 24 de Setembro de 2008
Ana Maria Lopes
6 comentários:
Boa tarde.
A cada parágrafo que li da sua descrição desta romaria e tudo em volta dela, pensava no mesmo há 20 anos atrás na minha terra e principalmente na Póvoa de Varzim.
Pego precisamente no fim do seu artigo: "E hoje, o que é que temos? A procissão, o fogo de artifício, uma feira infernal e pouco mais."
A "modernização" das sociedades trouxe muita coisa nova e levou muita coisa "velha". Levou todos os detalhes que descreveu e as pessoas já são hoje doutro tipo, olham para este passado com mal-dizer, as novas gerações. Como disse, é o que temos, mas esta transição para festas organizadas à "pressão" confunde-me.
Sinceramente, do pouco que resta, julgo que cada vez mais se perderá a beleza destas festas, pois estando muito ligadas à religiosidade, este factor também vai minguando nas pessoas.
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Minha Boa Amiga
Li, com gosto, mais um pouco, que é muito, das suas memórias. Desta feita, sobre a romaria da Senhora da Saúde, de que guardo algumas recordações.
Porque acredito que recordar é viver, também cultivo, ao meu jeito, esse hábito. Mais ainda: acredito que a história do povo passa fundamentalmente por aí.
Continue com memórias, porque terá, disso tenho a certeza, leitores assíduos.
Um abraço amigo
Fernando Martins
Boa Tarde
Deixo-lhe aqui um desafio: Para quando um post sobre os "VOUGAS"?
Seria interessante.
Gostando muito de Vougas, não é dos assuntos, em que me sinto melhor informada.
E tanto quanto sei, há várias histórias sobre a sua origem.
Existe na Costa-Nova um filho do Sr. Gordinho,oficial náutico aposentado, amante e praticante da vela, que penso que anda em cima do acontecimento.
De qualquer das maneiras, obrigada pelo desafio.
Há assuntos, para os quais sinto maior apetência, embora tenha dado, sobretudo, na juventude, boas passeatas em Vougas.
Bons ventos!
É a minha festa e tb a tua..um passado cheio de lembranças deste último fim de semana de Setembro e de Costa Nova.
"....E quando a festa acabar e voltrarmos prá cidade ....havemos de ambos rezar um rosário de saudade...."
Beijinhos
Maria
E cá estou eu,de novo.Já lhe "roubei"duas "Costa-Novas"de Fausto Sampaio,1 foto e uma pintura americana do Gazela I,etc.etc.Sobre Cândido Teles tenho um óleo(pintado numa TAMPA DE CAIXA DE CHARUTOS...)que nem a viúva conhece...É uma vista da Ria,tomada da LOMBA,apanhando o palheiro da minha Avó e respectivas "recoletas",todos os anos pintadas com tinta de óleo de fígado de bacalhau !...(imagine o cheiro...)
Cumprimentos...
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