terça-feira, 24 de junho de 2008

Encantador modelo do barco do mar



Não resisti à tentação de fazer deste lindíssimo modelo de barco do mar o actor principal da edição de hoje.

Conforme imagem abaixo, fez parte de uma montagem, em miniatura, das companhas da borda do mar, da Costa-Nova, exibida durante muitos anos no nosso Museu, muito seguramente, desde a sua abertura oficial, em 8 de Agosto de 1937.



Montagem, em escala, de um palheiro, barco do mar das companhas e carro de bois de transporte de peixe – enxalavar –, M.M. e R. de Ílhavo, 1937


Através da leitura de correspondência de Américo Teles, tive, em tempos, conhecimento da encomenda (entre 1934 e 1937), por parte dos Amigos do Museu de então, de um conjunto de peças ao artesão aveirense, Porfírio da Maia Romão, exímio miniaturista: vinte e duas alfaias de amanho das marinhas, em dimensão real, e ainda uma maqueta de uma marinha, em miniatura pormenorizada, oito miniaturas de embarcações da Ria, que têm lugar digno na Sala da Ria e este modelo de barco do mar, também à escala.

Material perecível como é, esteve sujeito aos efeitos do tempo e às condições de exposição, que nem sempre têm sido as melhores.

Até para se ser miniatura, é preciso ter sorte!

Tendo-se disponibilizado o Sr. Capitão Marques da Silva, com as mãos, o saber e paciência que lhe são reconhecidos para restaurar alguns modelos necessitados de intervenção, este foi o escolhido para início de tão meritória como exigente tarefa.

Em que mãos extraordinárias ele foi cair!

Tive a sorte, graças ao bom relacionamento com o Amigo Marques da Silva de ir acompanhando o processo de restauro.

Toda a embarcação foi limpa cuidadosamente, zelada e tratada. Marques da Silva fez os possíveis por manter a decoração das quatro caras de proa e ré, por estar magnífica, e ser feita com tintas envelhecidas, hoje muito difíceis de imitar. Interveio com muita habilidade e leveza num ou noutro pequeno troço mais degradado, sobretudo da cercadura. Esta, constituída por bordadura de motivos campestres, repetidos, é clássica, neste tipo de decoração. Na cara da proa, a estibordo, a cruz de Cristo; a bombordo, a cabeça de um arrais, talvez o arrais Ançã, ambos os motivos envoltos em círculos.

O modelo visto de cima



As diversas ferragens foram igualmente aprimoradas e substituídas ou refeitas.

Segundo atentamente me informou pelo telefone, o que mais parece ter emocionado Marques da Silva, ao lixar cuidadosamente a tinta ressequida do costado, foi verificar que a feitura do “barquinho” não utilizava cola e tinha um tabuado extremamente perfeito, cavilhado a madeira de mangue, para cavernas inteiras e alternadas – palavras do próprio. Por isso, resolveu não pintar o costado, mas apenas dar-lhe uma espécie de bondex para tratamento da madeira, deixando à vista aquela obra de arte.

Visto de estibordo


A sua intervenção foi mais profunda, a nível do aparelhar do barco – isto é, arte e aprestos, adequados.
Concluída a recuperação – confessa-me Marques da Silva – resolvi aparelhá-lo para a pesca: os remos com os seus cambões e arreatas, os caibros com as estribeiras, o cabo do reçoeiro sobre a rede arrumada à ré, com as suas pandas de cortiça devidamente empilhadas e o cabo da mão da barca arrumado a vante. Com os dois calimotes (barris) para as bóias das mangas, ficou pronto para ir ao mar.


Pormenor do aparelho, à popa


Todos os ilhavenses devem ficar muito gratos ao Capitão Marques da Silva, porque este tipo de trabalho é muito ingrato, já que até há dificuldade em conseguir, no mercado, materiais para estas tarefas. Pequenas inconfidências que me foi relevando – segredos do ofício de modelista – levaram-me a saber como ultrapassou esses contratempos: o cabo dos rolos, à ré (imagem de pormenor), foi feito manualmente, a partir de fio fino e a rede não é mais do que gaze encascada e cuidadosamente seca. Que paciência, engenho e arte!

Nem o sistema de varar ao mar foi esquecido, constituído por uns tantos rolos, sobre os quais o barco desliza, assentes em varas compridas, perpendiculares à linha da praia, sendo puxado, nesse tempo, por juntas de bois.

Para terminar, porque fé e devoção são apanágio do pescador, pintado, no arco da coberta da proa, NOSSA SENHORA DA SAÚDE, que a nós, ilhavenses, muito nos diz, por ser a Santa Padroeira da Costa-Nova do Prado.

1ª Imagem – in M. M. e R. de Ílhavo – Memória descritiva pelo Director António da Rocha Madahil, 1965
Fotografias – Ana Maria Lopes

Ílhavo, 24 de Junho de 2008


Ana Maria Lopes


1 comentário:

fangueiro.antonio disse...

Boa noite.

Verdadeiramente encantador. Estou há imenso tempo a contemplar os detalhes deste trabalho nas fotos, pois sou também grande adepto do modelismo naval.
Parabéns ao criador e ao restaurador, pelo seu trabalho de grande dificuldade.
Na minha opinião, o melhor modelista é o que consegue trabalhar sem as ferramentas de topo do mercado e produz peças improvisando, como por exemplo com a "rede de gaze". É quase um constante "ver" as formas noutros pequenos objectos do dia-a-dia e transformá-las.
Uma das minhas artes favoritas.

Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt