Como
o mundo é pequeno e, às vezes, anda distraído.
Sempre
fui conhecida e amiga da Senhora D. Maria Júlia Mano, viúva de Cândido Teles.
Falava-me com frequência no feito heróico de seu Pai, contemporâneo de meu Avô,
na pesca do bacalhau, mas, muito francamente, nunca liguei o nome à pessoa.
Capitão do Gamo
Agora,
que pretendia que o Marintimidades também fixasse, para memória futura, o grande
arrojo do capitão e tripulação do lugre Gamo,
qual não é o meu espanto, quando ao procurar a ficha de inscrição no GANPB de João Fernandes Mano, de
alcunha Agualusa, nascido em Ílhavo, em 1884, li que tivera como filhos, João
de Oliveira Mano (já falecido) e Maria Júlia O. Mano, a tal minha amiga, contemporânea
de minha Mãe, ambas com a vetusta idade de 87 anos.
Ficha do Grémio do capitão
E vamos ao Gamo. Há mais do que um relato. Assim sendo, resolvi respigar um deles, o que será menos conhecido, o do jornalista Costa Júnior, in Ao Serviço da Pátria – A Marinha Mercante Portuguesa na Iª Grande Guerra, edição da Editora Marítimo-Colonial, Lda. Lisboa, 1944.
Se a pesca do bacalhau já era, de si, tão dura, como todos sabemos, o ano de 1918 ainda conseguiu ser pior, pois, a ele acresceram os horrores e contrariedades da guerra submarina.
E relata Costa Júnior:
-
(…)
Todas
as contrariedades passadas, os trabalhos sofridos, eram dados como bem
empregados pelos 39 homens que constituíam a equipagem do lugre português Gamo, que naquele dia 22 do mês de
Agosto de 1918, se preparava par
iniciar a viagem de regresso ao Tejo. O navio encontrava-se estanque de quilha
à borda, carregado com cerca de seis mil quintais de bacalhau salgado, fundeado
entre os baixios Sunder e Nain Fathons.
A
ordem do Capitão de suspender a âncora não foi conseguida nem à primeira, nem à
segunda e a partida teve de ficar adiada para o dia seguinte. A viagem, tão mal
iniciada, parecia agora fazer-se, sem contrariedades e com vento de feição. Eis
quando: (…)
No dia 31 de Agosto, navegando o
lugre na latitude 46º 02’ N e longitude 32º 32’ W, o vigia assinalou pela amura
de bombordo, eram 16 horas, uma embarcação de velas içadas, mas sem jeito de
ser navio de vela, pois as tinha sem regra e mal colocadas. O capitão João Fernandes Agualusa pegou no
binóculo para melhor ver o estranho barco que se aproximava, e mal o fizera,
viu a explosão de um tiro, no mesmo instante em que uma granada assobiando a
sua música macabra, passava entre o mastro da mezena e o mastro grande, rente à
borda do navio, indo o projéctil cair a cerca de 100 metros de distância.
A
tripulação do Gamo não tinha dúvidas
quanto ao tipo de visitante – um submarino alemão camuflado.
Imediatamente,
o capitão, sem perder a serenidade, mas sem forças para lutar, rendeu-se à
evidência, enquanto um oficial alemão o informou que apenas tinham dez minutos
para abandonar o navio, que ia ser afundado, sem dó nem piedade.
(…)
Continuaram com a maior fleuma os marinheiros portugueses a preparar os pequenos dóris, com água e mantimentos, bússolas, remos, algodão de calafate, mastros, velas, baldes e tudo o mais que seria preciso e possível conseguir para quem, em barquinhos tão frágeis, teria de fazer uma viagem de algumas centenas de milhas.
Treze dóris (…) foram preparados e lançados à água, cada um deles tripulado com três homens, e sendo cheios 14 barris de 50 litros de água – dois dos quais ficaram no dóri do capitão. Era um espectáculo digno de ver-se, o submarino pairando nas calmas águas e atracados a ele os treze dóris. Depois do interrogatório costumado, o oficial alemão perguntou:
– Tu agora para onde vais, capitão?
E o capitão português, sem bravatas inúteis nem esperanças que seriam ridículas, respondeu o que em verdade pensava: - Vou para o fundo do mar, pois para onde irei eu nesta casca de noz?...
E os dóris largaram do submarino enquanto deste, a tiros de canhão, afundavam o Gamo. Ao longe, era avistado um penacho de fumo. O submersível apressou-se a mergulhar, e desapareceu.
Continuaram com a maior fleuma os marinheiros portugueses a preparar os pequenos dóris, com água e mantimentos, bússolas, remos, algodão de calafate, mastros, velas, baldes e tudo o mais que seria preciso e possível conseguir para quem, em barquinhos tão frágeis, teria de fazer uma viagem de algumas centenas de milhas.
Treze dóris (…) foram preparados e lançados à água, cada um deles tripulado com três homens, e sendo cheios 14 barris de 50 litros de água – dois dos quais ficaram no dóri do capitão. Era um espectáculo digno de ver-se, o submarino pairando nas calmas águas e atracados a ele os treze dóris. Depois do interrogatório costumado, o oficial alemão perguntou:
– Tu agora para onde vais, capitão?
E o capitão português, sem bravatas inúteis nem esperanças que seriam ridículas, respondeu o que em verdade pensava: - Vou para o fundo do mar, pois para onde irei eu nesta casca de noz?...
E os dóris largaram do submarino enquanto deste, a tiros de canhão, afundavam o Gamo. Ao longe, era avistado um penacho de fumo. O submersível apressou-se a mergulhar, e desapareceu.
Até 1 de Setembro, pela manhã, nada de extraordinário aconteceu, rumando as cascas de noz em direcção a sul, com mar chão.
Eis que rebentou uma forte trovoada, acompanhada de vagas alterosas, que impediu a navegação aos pequenos barcos.
(…)
Mas o que até aqui estivera mal,
às 17 horas tornou-se muito pior. Um forte escarcéu de mar rebentou, levantando
os dóris a pino, e voltando quatro deles; os restantes nove ficaram rasos de
água, que só a custo, e com muito trabalho e sacrifício, pôde ser esgotada.
Dois homens agarraram-se ao barco do capitão e foram salvos e outros igualmente
por outras embarcações, salvando-se nove homens dos doze que tripulavam os
quatro dóris que se perderam. Nesse instante, não mais do que um segundo, todos
os barcos perderam a aguada e mantimentos, e três homens perderam a vida.
Tendo
avistado a 2 de Setembro os faróis de um vapor, fizeram-lhe pedido de socorro,
que não foi atendido. Um dóri, contrariando as ordens sábias do capitão,
tentando correr sobre o vapor, acabou por se voltar, perdendo-se 2 dos 3
marinheiros que o tripulavam. E cinco vidas já estavam perdidas, em condições
tão agrestes e impiedosas.
Mais
uma vez, o capitão, corajosamente, aproveitou para fazer ver aos seus homens
que nenhuma embarcação se afastasse.
Não havia que comer, e por única
bebida para todos os homens, um barril com cerca de 40 litros de água, único
que se não perdera no momento em que todos os outros tinham ido pela borda
fora. Era preciso sair daquela situação – navegando. O tempo melhorara, embora
pouco, e foi resolvido correr com a vaga, ao sabor da forte ondulação, e
governando os dóris com dois remos servindo de leme, um de cada lado. Assim,
entre a vida e a morte, correram os náufragos do Gamo setenta milhas para sul.
No dia seguinte, novo desastre
veio atormentar mais, ainda, os tão atormentados náufragos. A vaga era menor,
os barcos corriam com as gibas içadas, mas cerca das 23 horas uma onda mais
alterosa fez entrar um dóri dentro de outro, afundando-o. A muito custo, os
seus tripulantes foram salvos pelas (…) restantes embarcações.
Nos dias 4 e 5 conseguiram os
bravos tripulantes do Gamo navegar à
vela. No último dia acabara-se a água, e a comida era coisa que não provavam,
havia já muitos dias. Nos dóris reinava a fome e a sede.
(…)
Entretanto,
mais um iate canadiano passara, mas não prestou assistência.
Reunir
todas as forças, para tentarem alcançar terra, só aí poderia estar a salvação.
(Cont).
Ficha do grémio - Cedência do MMI e foto do capitão, da filha, Maria Júlia O. Mano
-
Ílhavo,15
de Maio de 2013
---
Ana Maria Lopes
-
3 comentários:
Em todos os relato de afundamento de navios de bacalhau por submarinos se fala de TORPEDEAMENTO... Se tal acontecesse os ditos navios ficavam logo em estilhaços... Além disso nunca um cmdt de submarino iria gastar um dos seus poucos tropedos com uma casca de noz...
Quanto á viagem dos 13 doris não há duvida que eles foram felizmente arrastados para os Açores como aconteceu a muitos outros.... Entre eles o Diogo de Teive que descobriu mais algumas ilhas quando vinha da TN....
É interessante que Ilhavo nunca lembra homens como este Capitão Mano e também Artur da Velha, que merecem ser recorados...
Antonio Angeja
meu avô manoel dos santos ramalheira labrinchacasado com carmina, foi comandante de navio em ilhavo....meu pai flavio da silva labrincha, torpedeado pelo navio arabutan,imediato, e naufragado perto de ny, foi condecorado heroi de guerra.....faleceu aos 102 anos em friburgo rio de janeiro......eu filho flavio da silva labrincha filho, moro no rio de janeiro......
Caro Sr. António Angeja,
Se a memória não me atraiçoa, julgo que já trocamos informações via mail. Daí que, pelo que me foi dado observar não devo menosprezar os seus conhecimentos, quanto à história de navios, das navegações e por motivos óbvios dos Ílhavos, seus concidadões.
Só que neste caso, porque a história do episódio de guerra ainda está a ser transcrita, creio valha a pena esperar um pouco para saber o que realmente aconteceu.
É absolutamente verdade, que em circunstâncias normais, um qualquer navio de madeira a navegar com uma tripulação indefesa, nunca seria torpedeado ou até canhoneado, porque a colocação de alguns explosivos a bordo, resolviam facilmente o fim em vista.
Contudo, considerando o facto do ataque ao Gamo ter ocorrido vai para cem anos, a mim e acredito que também à Dra. Ana Maria, seja irrelevante a forma de afundamento do lugre, até porque aos olhos e ao coração das pessoas, é irrelevante a correcta definição de um absurdo acto de pirataria.
Porém, na eventualidade de notar alguma gralha na explicação relativa ao afundamento ou à heróica cavalgada, que permitiu com sucesso o salvamento da tripulação, já entenderia o seu comentário. E se tal não bastasse, tentaria com prazer enviar-lhe as folhas do diário de bordo do submarino alemão, para confrontação directa com o texto agora reproduzido.
Muitos cumprimentos,
Reinaldo Delgado
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