sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Memórias da romaria da Senhora da Saúde


 
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Os festejos em honra da Nossa Senhora da Saúde, iniciados em 1837, vieram substituir a primitiva Festa de S. Pedro, em Ílhavo (que se tornou na Festa das Companhas), passando a ter data fixa, no último domingo do mês de Setembro.
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Competia em popularidade com o S. Paio ou com o S. Tomé, na grandiosidade da animação dos festejos lagunares, no corrupio de gentes e na algazarra. Do norte do Bico ao sul da Mota, a Costa-Nova engalanava-se com o estendal de moliceiros.
Agora, vem aí a romaria…Só que nem dá p’ra te comprar uma flor…
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A minha mais antiga recordação deste arraial é uma fotografia, no terraço do meu palheiro, à época, com dois anos e um grande laçarote na cabeça. A armação da festa comprova a data – fins de Setembro de 1946. Vivia no coração da romaria.


 
A armação da festa…1946


Outra memória, bastante mais forte e de que ainda hoje me recordo vivamente, foi a minha integração na procissão, trajada de anjinho – a primeira e a única vez.
Cá perdura o boneco tirado à la minuta no meu baú, como mandava a tradição.
Só que foi uma procissão complicada e agitada, porque durante o seu trajecto, deflagrou um forte incêndio na, à época, Pensão Pardal, na esquina norte da Estrada do Banho.
Alterado o percurso, o susto apoderou-se de todos. As chamas lambiam as outras casas e todos temiam que se propagassem às residências vizinhas. Foi um alvoroço.
Lá vieram os Bombeiros de Ílhavo acudir ao sinistro que poderia ter alcançado proporções gigantescas, dado que as casas da proximidade eram palheiros de madeira ressequida.
Na ausência de data na fotografia, lá fiz algumas diligências para situar a ocorrência no ano certo – foi no domingo da Festa de 1951 (in O Ilhavense de 10 de Outubro de 1951).
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Naquela idade, os meus avós faziam-me as vontadinhas todas e eu lá tinha os meus rituais.
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A minha primeira compra era um “chapelinho de papel” muito frágil e gracioso, que habitualmente estava à venda numa tenda, que montava arraial em frente à Vivenda Quinhas, hoje de Jorge Picado.
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Quando chegavam à minha porta, a ti Adelaide Ronca com as flores de papel com quadra popular e ventarolas, e a ti Caçoa, com o baú das doçarias tradicionais, entre as quais sobressaíam os melosos e açucarados suspiros e os bolinhos brancos, logo as boas festeiras tinham em mim uma das primeiras freguesas; uma mão para erguer o moinho à procura do vento, até que zunisse, e logo a outra atascada com doçarias para secar a água que me crescia na boca, só de vê-las.
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Seguia-se a visita à Vida de Cristo, em movimento, descrita em voz roufenha, rouca do publicitador, tornada ensurdecedora pela ampliação conferida pelas cornetas do altifalante, que tentavam sobrepor-se ao anúncio das cadeiras voadoras ou da casa dos espelhos ou do comboio fantasma, itens do arraial que se iam visitando, vez à vez, até que esgotados  na segunda-feira do fim de festa.
Incluída no programa das visitas, não podia faltar uma ida  às barracas de loiça de Barcelos, para “puxar” de uma argola presa a um fio, que erguia o número correspondente ao prémio, que calhava em sorte.
Assim ia gozando a festa naquela idade da criancice e inocência.
Os restantes registos fotográficos são bastante mais tardios, de 1960, ano em que as minhas amigas e eu, já espigadotas, no esplendor da nossa juventude, combinámos viver a Senhora da Saúde, à moda antiga. Tinha 16 anos.
 
Os primeiros sinais da romaria eram dados pela chegada e montagem da armação. Depois, a vinda das primeiras tendas. Mas quando os primeiros moliceiros chegavam do norte e do sul da ria, os norteiros e os matolas e atracavam mesmo aqui pertinho de mim, então a festividade estava próxima.

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Nas belas proas dos moliceiros…
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Experimentámos de tudo um pouco. Depois de um belo passeio de Vouga, estava na hora de começar a reinar: andámos de carrossel, de carrinhos eléctricos, de cadeirinhas voadoras, integrámo-nos nas danças sobre a proa dos moliceiros, subimos aos vistosos e animados coretos, tirámos a sina numa boneca de tecido peludo preto, com uma grande cabeçorra, normalmente em frente do palheiro dos Senhores Moura, hoje da Rosa Maria Moura, apreçámos toda a quinquilharia possível, desde os toscos brinquedos de lata e madeira aos ferros forjados mais elaborados. E o café de apito?
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Passeio à vela
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No carrocel…
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No coreto
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A apreçar ferros forjados
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Assistimos respeitosamente ao desfile da procissão, apreciámos o fogo-de-artifício, assustando, conforme podíamos e sabíamos os forasteiros, especados, de olhos pregados no céu.
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Foi assim a nossa festa setembrina de 1960, em homenagem à Senhora da Saúde, em que se concentrava grande número de devotos.
 
As participantes na folia eram Maria Manuela Vilão, Rosa Maria Moura, Eneida Viana e eu.
 
Hoje, no entanto, apenas com os festejos religiosos e o fogo-de-artifício, ainda se vai passar à Costa-Nova a Senhora da Saúde. Nem gostamos, sequer, de ver a casa fechada. Tradição… É a que temos. É para respeitar, tentar transmitir…e, se possível, melhorar.
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Imagens – Arquivo pessoal da autora

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Ílhavo, 28 de Setembro de 2012
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Ana Maria Lopes
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5 comentários:

Sara Bandarra disse...

Apreciei muito esta sua crónica. As fotos são fantásticas!

Etelvina Almeida disse...

Adorei a descrição que fez dos festejos da Nossa Senhora da Saúde de outrora.
Apetecia viver esses momentos, apesar de não serem os meus...
Era a romaria, as diversões, a procissão, e os moliceiros...
Obrigada por partilhar estas relíquias.
Abraço,
Etelvina Almeida

Anónimo disse...

O palheiro a Norte da Pensão Pardal (do ti'Zé Pardal,com direito a uma "lingueta",plano inclinado...)pertencia,salvo erro à Família Guerra,cujo "mais velho"se entretinha a "fiscalizar,de binóculos da sua profissão,a "laguna"...No dia do incêndio,embora ainda houvesse um quintal de permeio,os Guerra,afanosamente atiravam baldes de água para a parede (sul)-de madeira,claro -exposta ao incêndio...(Não havia água canalizada...)
Nos tempos mais antigos,na Lomba,quando havia um incêndio num palheiro,traziam-se umas juntas de bois das "companhas",passava-se um cabo à volta do "palheiro" a arder,e puxava-se,lomba abaixo,para que o incêndio não se propagasse aos vizinhos!...Não sou desse tempo!...Cumprimentos,"kyaskyas"

Anónimo disse...

Ainda sobre o incêndio na Pensão Pardal,a atolambada da criada da minha avó (morávamos 4 casas a sul...)meteu os pertences numa mala de cartão,e apanhou a barca de passagem para a "bruxa"!...Só apareceu ao fim do dia!... "kyaskyas"

Maria Emília disse...

Gostei imenso deste texto. Há muita coisa de que ainda me lembro também e que quase estava esquecido, mas que ao ler me veio de imediato à memória. Muito bom, Ana Maria!