segunda-feira, 23 de julho de 2012

Apresentação do Almirante Rui de Abreu, no Museu de Marinha - 1

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Há textos que gostamos de guardar, partilhar e exibir no Marintimidades. E este, com que o Amigo Almirante Rui de Abreu nos brindou na apresentação do nosso último livro, no Museu de Marinha, é um deles. A saber:
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Cabe-me em primeiro lugar agradecer o honroso convite da Autora, para hoje vos vir apresentar a 2ª edição do livro Moliceiros – A Memória da Ria.
Para aqueles, que melhor me conhecendo, também aqui estão, não faltarão motivos de espanto: um alentejano, produto de culturas de sequeiro, ter a ousadia de vir comentar uma obra sobre uma paisagem aquática e as gentes, fainas e barcos nela integrados.
Estou em crer que terá pesado na escolha da Dra. Ana Maria Lopes, para além da amizade e consideração firmadas quando neste mesmo pavilhão foi lançado o Regresso ao Litoral, o saber que ainda me corre nas veias alguma água da Ria: mergulham as raízes do meu apelido na vila de Angeja!
O que a Dra. Ana Maria Lopes não sabe é da minha relação com o barco moliceiro, carregada de afectos, ter mais de sessenta anos!
É consequência desta memória, tendo como base apenas o que li sobre o assunto que me atrevi a aceitar o convite, e estar hoje neste púlpito.
Perdoe-se-me pois a fraca competência, em nome desse amor dos meus verdes anos e permitam-me, à laia de introdução que o conte.
Conheci a Ria na primeira metade dos anos 50 do século passado, quando com meu pai fui visitar os parentes próximos ainda existentes em Angeja.
Guardo ainda hoje esse espanto inicial duma cidade cheia de canais, duma vastidão líquida espelhada, coalhada de velas e de uns barcos muito bonitos com uma silhueta nunca antes vista, de umas pirâmides de um branco ofuscante, do barulho atroador dos barrotes da ponte da Barra, quando o automóvel a atravessou, e da altura descomunal do farol às riscas…
Em Aveiro, junto ao Campo da Feira, atracados, os tais barcos, muito coloridos, com o casco cor de gema de ovo, a que o meu Pai chamou de moliceiros, explicando – me para que serviam e o que era o moliço e que quando era rapazote, estes mesmos barcos ainda chegavam ao cais de Angeja…
Lembro-me vagamente das feições de meu Tio-avô, duns primos direitos do meu Pai, da casa dos Bisavós, da Igreja matriz toda em azulejos azuis! Coisa espantosa para quem até então só conhecia igrejas caiadas!
Não sei já bem qual a parentela que me ofereceu uma miniatura de um moliceiro, aí com uns três palmos bem medidos. Foi um amor à primeira vista!
Era, reconheço – o hoje, um verdadeiro modelo, feito à escala, bem proporcionado, dispondo de tudo aquilo de que agora já sei o nome.
Devia ter ido para uma vitrina, mas, dado ao menino, tornou-se brinquedo e foi navegar para Portalegre.
Modificado o seu destino, de barco lavrador passou a tudo o resto, depois de perdidos os ancinhos e outros apetrechos. Foi navio de guerra, barco pirata, transporte logístico. Um barco para todo o serviço!
Tudo correu bem enquanto navegou por soalhos e carpetes, atracando com mestria aos molhes de cubos de madeira ou “malhadas” de peças de dominó. Mas que diabo! Um barco é um barco e o seu ambiente natural é a água!
E numa tarde, transformado em transporte de tropas, foi cuidadosamente colocado no tanque do quintal.
Imperícia do arrais, erros de estiva ou indisciplina da soldadesca, que resolveu toda tombar para bombordo, deu-se o inevitável naufrágio: o meu barquinho adornou e mergulhou rapidamente para o fundo.
Não tendo grande altura de água, o muro circundante era suficientemente alto para eu, com os meus curtos seis anos, pequeno para a idade, conseguir alcançá-lo com o braço.
Ir para dentro do tanque e arrostar com a ira divina da Avó Júlia era inibidor! Paralisado e aflito, liguei os alarmes das grandes catástrofes!
Ao berreiro, acudiu a Ermelinda, vinda a correr da cozinha e a quem entre soluços expliquei o infeliz sucesso. Motivo à vista: no fundo do tanque, próximo da borda, jazia o moliceiro tombado, alguma guarnição dispersa…
A Ermelinda depois de arregaçar a manga, mergulhou o braço e decidida deitou a mão ao mastro e puxou o barquinho.
Mas a Ermelinda, nascida e criada nas faldas da serra de S. Mamede, não percebia grande coisa de barcos e muito menos de hidrodinâmica: com o sacão do “içamento”, “descoichiou”em definitivo o mastro, rebentando com todos os “bolinões” e demais guitas e despegando a verga! O meu moliceiro chegou à superfície escorrendo água numa ruína total!
O resto dos soldadinhos de chumbo foi pescado de seguida.
Depois de um “não foi nada, minha senhora” à natural pergunta da minha Avó a (o alarme sonoro que havia sido breve, fora entretanto desligado mas ultrapassara a cozinha), a Ermelinda vendo o meu ar desconsolado, acrescentou em voz baixa:“ Deixe estar menino! Põe-se a secar ao sol e depois cola-se tudo”!
Assim se fez! Mas o sol alentejano não tinha o tempero atlântico da pátria chica, do meu barquinho. Duro e inclemente, foi desconjuntando casco e fundo, encaracolando as finas pranchas, soltas da cola que as juntara.
Foi considerado irreparável: nem o meu Avô nem Tias conseguiram refazê-lo! Acabou indignamente no caixote do lixo!
Guardei-o para sempre na memória!
Deu-me depois a vida uma grande volta!
Só passado mais de um lustre, voltei à Ria, escolhendo a Pousada do Muranzel para viver os primeiros dias da minha nova condição civil.
O destino havia-me ligado a uma Colega, natural de Esgueira e que até aos seus 11 anos vivera entre a vila e a cidade, praia da Barra nos verões!
E numa manhã, sol ainda baixo, tive a felicidade de ao assomar à varanda, naquela luz nacarada e brumosa, a curta distância, bolinando, elegante como um cisne, deslizando quase sem ruído lá ia a barca dos meus sonhos: um moliceiro a todo o pano subia na direcção da Torreira com alguma ajuda da enchente. Visão quase irreal que acompanhei até a frescura da hora matutina me obrigar a voltar para dentro.

Mas foi exemplar único! Nos dois dias seguintes só vi barcos a motor!
Regressemos então à razão da minha presença, explicada que está a audácia porque o faço.
Em boa hora se disponibiliza ao público esta nova edição de uma obra há muito esgotada, que um camarada, murtoseiro de várias gerações, me ofereceu no Natal de 97.
O título, envolve não só a embarcação que considero a mais elegante de todas as tradicionais portuguesas, emblemática de toda uma paisagem, como a profissão de quem nelas trabalha…ou trabalhava.


Intervenção do Almirante Rui Abreu


(cont).


Ílhavo, 23 de Julho de 2012

Ana Maria Lopes
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2 comentários:

Tito Cerqueira disse...

Ana Maria,
Parabéns ao alm. Rui Abreu por este seu extraordinário texto com que nos presenteou em 12 de Abril passado no Museu de Marinha, aquando da apresentação da reedição do teu magnífico livro "Moliceiros - A Memória da Ria". E também estás tu de parabéns pela feliz iniciativa de aqui o publicar, levando-o assim ao conhecimento de todos aqueles que, não tendo estado presentes no evento, gostam das coisas do Mar e da Ria e são fiéis leitores do "Marintimidades". Pena é que aqui não possa ficar registada a forma eloquente como o orador fez a sua comunicação, que cativou a numerosa assistência da primeira à última palavra. Uma intervenção que ficará na nossa memória.

Ana Maria Lopes disse...

Olá Tito:

Obrigada Tito, pelo teu comentário. Pelas razões indicadas, também quis que a comunicação do nosso comum Amigo Almirante Rui de Abreu ficasse registada no Marintimidades.