É certo que o vento não
soprava. De tarde aumentou um pouco, mas ainda estava fraco. Mas o Santa Maria Manuela não se fez rogado
e, uma a uma, todas as velas foram içadas. Ao sair a barra, já estava em cima a
vela grande e à proa, a polaca e a bujarrona. Ao início da tarde foram içadas,
por esta ordem, a giba (à proa), a vela do traquete, a do contratraquete e por
fim, a vela da mezena. Mas não se iam ficar por aí. Logo a seguir, seriam
içados, por esta ordem, os gavetopes do traquete, do contratraquete, do grande
e da mezena (ou seja, um a um, da proa para a popa). E assim passou o Santa Maria Manuela a navegar com todos
os seus 11 panos orgulhosamente envergados nos seus mastros.
Foi curioso observar a
confusão de cabos que abunda por todo o navio, até porque tenho sempre que
pedir ajuda para montar convenientemente o catamaran
que costumo alugar na Costa Nova. E assim, logo à partida, quando comparado com
esse barquinho, a dificuldade aumenta enormemente, a partir do momento em que
se começa a multiplicar por 11 o conjunto de cabos e apetrechos necessários
para cada vela ou mastro: escotas, adriças, moitões, amantilhos, brandais,
enxárcias, mais os cabos para amarrar cada vela quando descansa... E certamente
me estou a esquecer de outros mais... É preciso tirar um valente curso. Mas a
tripulação manejava toda esta parafernália com destreza e mestria.
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Ainda a respeito dos
gavetopes, confesso que não conhecia o termo, mas rapidamente tentei
inteirar-me do seu significado. "Gavetope" ou "gafetope"
são as palavras portuguesas que derivam do inglês "gaff top", que
significa topo da gávea. Portanto, o termo identifica as velas que são içadas
no topo dos mastros. Pensava que estas seriam as famosas estênsulas, envergadas
pelos antigos lugres, como o próprio Santa
Maria Manuela, quando era mais novo. Mas não. Em comparação com as estênsulas,
estes gavetopes são mais pequenos e certamente muito mais leves – uma das
muitas inovações introduzidas na remodelação do navio, que não desvirtuam o seu
aspecto.
Talvez devido à beleza e
elegância que o navio espalhava no ar e espelhava na água, tivemos a
simpatiquíssima visita dos verdadeiros especialistas da hidrodinâmica e da
destreza aquática para completar o cenário – pelo menos três golfinhos
apareceram para brincar na proa do navio e acompanhar a sua deslocação suave.
Nunca tinha assistido ao vivo. Fiquei o tempo todo a admirar os seus movimentos
rápidos e elegantes.
Pareciam ser eles que
rebocavam o navio. Andavam de um lado para o outro, a vante. Apareciam acima de
água, saltavam, mergulhavam, passavam por debaixo da proa do navio e apareciam
do outro lado. Davam a sensação que viviam uma intensa alegria.
A viagem continuou calma
e o vento até amainou um pouco. À medida que o sol se aproximava do horizonte,
todas as cores ficavam mais quentes, quase parecendo queimar os objectos.
Entretanto, vimos uma
nuvem curiosa por estibordo, por detrás da qual se escondeu o sol. Estava
previsto alterar o nosso rumo sucessivamente para estibordo, invertendo o
sentido da marcha em direcção a norte, para regressar. Passaríamos entre a
Berlenga e os Farilhões. Mas, surpresa das surpresas (para mim, pelo menos), à
medida que nos aproximávamos da referida nuvem, as condições de vento e de mar
começam a alterar-se bruscamente. Passou a estar mais frio, pelo que tivemos
que vestir uns casacos e passámos a ouvir uma zineira permanente.
Como o vento vinha de
estibordo, de oeste, e ainda teríamos que andar algum tempo nessa direcção,
para passar a sul dos Farilhões e inverter o sentido da marcha, assim que
começámos a andar contra o vento, naturalmente as velas começaram a bater.
Todos os panos ainda estavam içados e, principalmente, os gavetopes esvoaçavam
numa dança permanente.
Não estava preocupado com
toda a barafunda, porque um veleiro é um veleiro e eu sabia que assim que
cruzássemos a linha do vento, as velas encheriam do lado contrário, o navio
teria conseguido virar de bordo e prosseguiríamos a rota definida.
De qualquer forma, até
que isso acontecesse, gerou-se alguma azáfama a bordo, para baixar os
gavetopes, que continuavam endiabrados. O cenário era digno de registo, embora
um pouco enigmático, porque ainda havia um lusco-fusco, a lua estava cheia e
começava a espreitar por debaixo da tal nuvem, o navio tinha os holofotes do
topo dos mastros acesos e a tripulação andava de um lado para o outro, embora
houvesse alguma ordem em tais movimentos. A hierarquia de comando parecia
funcionar e cada um sabia a sua função com maior ou menor rigor.
Eu observava e fazia
experiências com a máquina fotográfica e com o telemóvel para tentar armazenar
esse movimento – do mar, das velas, das gaivotas e dos homens, o melhor
possível. Sim, porque situações destas, de movimento, luz e cor, não acontecem
ao virar da esquina.
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E já disse gaivotas. Sim,
não sei donde elas apareceram. Provavelmente vieram dos Farilhões ou da
Berlenga. Estão habituadas a ver passar muitos veleiros por estas paragens. Mas
a maioria deles são mais pequenos e não são tão vistosos como o Santa Maria Manuela. Imagino que as
gaivotas tenham vindo para ver se estava tudo em ordem.
Certamente, não só
acharam alguma parecença entre as velas do navio e as suas próprias asas, como
também lhes pareceu familiar a forma leve e elegante como o navio sulcava as
águas, muito semelhante ao seu próprio movimento de planadoras, quase sem
esforço.
Ouvi-as, talvez por
telepatia, dizer umas para as outras:
– Este não é o Creoula? É tão parecido!
– Não, são realmente
parecidos mas esse costuma vir de sul e este veio de norte. Eu já vejo as suas
velas desde que passou ao largo da Nazaré.
Ainda tagarelaram mais
qualquer coisa, mas já não consegui ouvir. Depois, acho mesmo que pararam de
conversar e começaram um movimento frenético de mergulho, seguido de refeição
rápida, do tipo fast-food. Às vezes,
os peixes fugiam-lhes. Mas elas não largavam o navio. Pareciam aproveitar a luz
e o movimento. E não sei mesmo se não pousariam algures para descansar,
aproveitando a boleia.
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Estava tão envolto nestes
movimentos graciosos de asas e refeições rápidas, que quase me assustei... De
repente, parecíamos ter ficado às escuras. Apagaram os holofotes dos mastros.
As gaivotas não eram mais visíveis. E o corpo parecia querer um bom beliche
para descansar.
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E o relato do meu filho
Miguel continua.
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Costa Nova, 15 de Agosto
de 2013
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1 comentário:
E eu vou ficar á espera de ler o resto! Gostava imenso de fazer uma viagem destas, mas como enjoo, ainda não ganhei coragem! Estou a gostar de ler este relato da viagem!
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