Era uma bela tarde, quente e calma, de Agosto, do ano de 1970. A família, de férias, gozava-as, em pleno, na Costa-Nova. Naquele dia, a nossa tarde foi diferente, tonificante e emotiva. As quatro gerações presentes – Avó, Mãe, eu e o meu filho mais velho – e restantes elementos da família preparavam-se para uma ida a S. Jacinto. Não era piquenique, nem uma ida às camarinhas, passeios estivais também bastante agradáveis. Mais raro e emocionante – o bota-abaixo de um arrastão costeiro, nos Estaleiros de São Jacinto. É uma “estória” muito recente que já tem um grande peso na nossa história. As pessoas e as coisas que já mudaram de cenário!
E quando o arrastão se chamava CAPITÃO PISCO, a carga emotiva, para todos nós, era muito mais forte. Ler mais aqui.
De carro até ao Forte, na lancha da carreira até S. Jacinto, que belo passeio! É sempre agradável ver o Farol numa perspectiva diferente e passar pela entrada da Barra, com a sua forte corrente de águas cristalinas, espumantes e límpidas…
Claro que um bota-abaixo, naquele tempo, de um pequeno arrastão costeiro, não tinha nada a ver com as encenações conseguidas, em anos anteriores, nos Estaleiros Mónica. Só que a emoção de um navio que rasga, pela primeira vez, as calmas águas da ria…ninguém lha tira…
A construção, em aço, nº 85 do estaleiro, de 32 metros de comprimento, destinava-se à pesca costeira com redes de arrasto.
A minha Avó “amadrinhou” a nova unidade, emocionando-se mais intimamente com o acto; trouxe, por gentileza da administração do estaleiro, um belo embrulho de papel colorido e laçarote sedoso e enovelado, cuja peça envolvida ainda hoje me faz parar diante dela, pela sua beleza e significado afectivo.
Lá estou eu a perder-me com as cerimónias de bota-abaixo…Fixemos o objectivo – o naufrágio do CAPITÃO PISCO.
No primeiro de Janeiro de 1986, quando dava os últimos retoques à mesa, para o almoço de boas-vindas ao Novo Ano, toca o telefone… Está? O que acabei de ouvir, pela voz perturbada do Dr. Cunha?...
Sem perdas pessoais, até porque, na altura, não estava ninguém a bordo, o CAPITÃO PISCO naufragara. Faz, exactamente, hoje, vinte e três anos.
Como fora, como não fora…Todos comentámos que o Novo Ano (1986) estava a começar com “óptimas” entradas…
Junto à Marginal da Figueira da Foz, onde hoje é o porto comercial, durante a invernosa noite, o Capitão Pisco estava atracado por fora do Santa Mãe Laura, arrastão igualmente costeiro, pertença da empresa de pesca Sociedade Brasília.
Por força da corrente, na vazante, os cabos do Santa Mãe Laura partiram-se e os dois navios foram de enxurrada, com a força da correntia, pela barra fora, quais brinquedos de criança.
O Santa Mãe Laura estatelou-se nas pedras do molhe e partiu-se de imediato – era de madeira.
O Capitão Pisco saiu a Barra, contornou o molhe e foi encalhar no Cabedelo, a sul da Figueira da Foz.
O mestre pedira para o levarem para bordo, de helicóptero, a ele e ao motorista, mas, impossível, devido às péssimas condições de tempo e mar. Ali ficou, meses e meses, dado como perdido.
A mútua considerou a perda total do navio e indemnizou a empresa, tendo ficado com os salvados que vendeu.
Com o alvará, construiu-se, para substituição da unidade, no Estaleiro Naval do Mondego, na Figueira da Foz, o arrastão costeiro para crustáceos Cygnus.
Fiquei, mais tarde, com um salvado de grande importância afectiva para mim, o sino, embelezado por um primoroso trabalho de marinharia.
Além de alindar a entrada da casa de praia, anuncia visitas e serve de mote a uma história “verdadeira” para os netos. Era uma vez… um barquinho verde, que, numa noite de mau tempo, ….
No domingo seguinte, num soalheiro, mas frio dia de inverno, eu e o Miguel fomos “ver para crer” e imortalizámos as chapas com que deparámos nas “chapas que batemos”.
Comentários para quê?
O belo horrível…
Imagens – Arquivo pessoal da autora
Ílhavo, 1 de Janeiro de 2009
Ana Maria Lopes
2 comentários:
Belas memórias e testemunho de ligação aos navios. Também sou assim ligado a estas criaturas flutuantes. Não tenho a certeza se cheguei a fotografar o CAPITÃO PISCO, mas o CYGNUS , sim, já fotografei em diversos locais. Esses cascos verdes são inconfundíveis,os últimos que registei em imagens foi em Sesimbra em 2007.
Em Lisboa tinhamos uma frota de belos navios de cascos verde acinzentado, nos quais viajei e inclusivé vi alguns seguirem para a última viagem a caminho de sucateiros impiedosos na Ilha Formosa.
O que mais me doeu foi o SANTA MARIA, que saiu de Lisboa pela última vez a 1 de Junho de 1973, pintado de fresco de alto a baixo, carregado de automóveis em todos os espaços dos tombadilhos...
Parou em Luanda, Lourenço Marques, deste porto rebocou um dos costeiros da CCN para desmantelar em Port Louis, e lá seguiu o meu SANTA MARIA para a Formosa. Era um belo paquete, apenas com 19 anos de serviço, podia ter navegado mais 30 pelo menos, se tivesse tido mais sorte.
Descobri umas fotografias minhas tiradas em 1989 na Figueira da Foz, do CYGNUS a largar para as provas de mar. Na altura trabalhava na RINAVE, sociedade classificadora do navio. Foi construído na FOZNAVE, mesmo junto à foz do Mondego...
Em breve publicarei no blogue dos Navios e do Mar...
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