terça-feira, 12 de agosto de 2008

Joana Càlôa, "arraisa" das companhas da Costa-Nova, é minha bisavó



Há coincidências curiosas e esta é uma delas. Tive de ultrapassar as 6 décadas de existência para saber que a minha bisavó materna tinha sido Joana Càloa, “arraisa” das companhas do Sr. João da Cruz, da Costa-Nova. Ou melhor, souberam por mim e depois também fiz alguma coisa por me esclarecer melhor.
Uma tarde, por finais do mês de Abril, encontrámo-nos, casualmente, à porta do Museu, eu, o Francisco Calão e Senos da Fonseca. Este interpelou-nos, no sentido de, na qualidade de bisnetos de Joana Càloa, eventualmente, podermos ter alguma fotografia dela, por casa. Ambos franzimos o nariz, encolhemos os ombros e achámos que não tínhamos e que não seria fácil conseguir.

Claro, foi a minha primeira impressão, mas não descansei. Porque o assunto me interessava, comecei a pensar numa maneira de a tentar obter e de saber mais histórias da tal bisavó. Pensei, pensei… relacionei as famílias e decidi fazer, no dia seguinte, uma visita às Irmãs Marques, que sei terem boa memória e muito saberem de factos antigos. Confirmou-se… Joana Càloa era sua avó materna, mãe de Nazaré Correia, com quem sempre vivera.
Mulher trabalhadeira, valentona, bonita, esbelta, prazenteira, a Joana tinha sido casada com João Simões da Barbeira (o Pisco) e fora…arraisa, como ela própria se intitulara, nas companhas da Costa-Nova. Morreu em 1935 com 72 anos. Teria nascido lá por 1863.

Entendi, então, a razão de ser do nome do meu avô, que nunca tinha percebido muito bem – Manuel Simões da Barbeira (o Pisco), tal como reza na placa da campainha da minha casa da Costa-Nova – CAPITÃO PISCO – 1º ANDAR, que fiz gosto em manter.
E fotografia da minha bisavó, lá a tinham, religiosamente guardada, tendo-ma emprestado amavelmente. Lá fui eu digitalizá-la, para a devolver, sem demoras.

Fotografia de A. Rapheiro – Aradas – Aveiro


Fizeram ainda questão de me mostrar a foto de parede do meu bisavô, que decorava a sua sala de entrada, que também havia sido marítimo, tendo ido trabalhar para Sesimbra, no conserto das redes de cerco do atum.

Então e as coincidências?

A seu devido tempo, Senos da Fonseca no Blog 200 Anos da Costa-Nova, antecessor do seu próximo livro, em 29 de Junho, ao tratar os ícones da referida praia, dá a lume, entre outros, a “arraisa” Joana Càlôa.

Transcrevo algo do que refere:

Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de «arraisa» – ou governadora de terra, a quem eram remetidas as tarefas de orientação da Companha (…).
Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros, profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos quebreira, para o ir largando como mandavam as regras. (…)
Era mãe de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente (Manuel da Barbeira, mais tarde conhecido por Cap. Pisco, Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão, David – oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo – e D. Nazaré Marques). Todos eram, contudo, filhos de seu marido João Simões da Barbeira (o Pisco).

Coincidência também, no passado sábado, ao assistir ao lançamento do livro de João Laruncho de São Marcos, no MMI., quando o Apresentador cita o nome de “uma mulher que vale a pena recordar nos anais dos ílhavos e gente das lides da borda do mar, rara como poucas” – nem mais nem menos do que Joana Càloa. Até estremeci. A Joana Càloa está na moda …– pensei.

Belo parágrafo este que o Autor lhe dedica, na p.75:

Na praia, a Joana, como arrais de terra que era, chefiava com aprumo, concentração e voz bem timbrada de mando, a manobra da arribada. E se debaixo de aguaceiro, caído e armado repentinamente de sudoeste, sem ser esperado, ameaçando atravessar o barco à maresia e, ou ainda particularmente se, por partidela da cala ou enrascadela do reçoeiro, a rede tinha de andar à mão, era ver a Joana de saias encilhadas e mar acima dos peitos, a incitar aos berros e gritos de mando:”Arriba e vai acima! Ou “Pega aqui larga acolá!” Como chefe incontestado a quem todos, homens e bois, olhavam e em uníssono obedeciam para vencer a pancada do mar.


Senos da Fonseca, na palestra que vai proferir, amanhã, dia 11 de Agosto, incluída no programa cultural da 6ª Semana Internacional de Vela do C.V.C.N., intitulada A importância da Costa-Nova na afirmação dos “ílhavos”, é natural que traga, de novo, para a baila, a Joana Càlôa.

Aguardei… e assim foi. Até intervim entusiasticamente, o que não é muito meu hábito.

Embora de uma forma muito mais sucinta, que no citado blog, excepto para os seus bisnetos, lá vem a Joana, nomeada entre os símbolos humanos da Costa Nova, simples no ser, grandes no arcaboiço heróico.

Ver mais em "A Arraisa Càlôa", Agosto 2008.

Acrescentou-lhe um pequeno apontamento literário, que me cativou. Com alguma dose de especulação, põe a hipótese, que subscrevo, de a figura da Joana ter servido de fonte de inspiração a Eça de Queirós, ao descrever a personagem de “Joana “ em A Tragédia da Rua das Flores, como corpo de estátua, com uma solidez ancestral das mulheres da Ria de Aveiro (…) onde havia um calor morno, dissolvente, delicioso, estonteador.

Montagem trabalhada de Joana


Não esqueçamos que Eça visitara frequentemente a Costa-Nova, pelos anos 80 do século XIX e era um amante das companhas, onde poderia ter encontrado a Joana.

Outra coincidência?

Vários bisnetos/as assistiram à comunicação, a começar pelo próprio Presidente do C.V.C.N., já que, ao todo, julgo, sermos dezassete. Serei a mais velha. A Luísa Càlão, curioso, é a actual proprietária do palheiro ocre, fielmente restaurado, que era da sua bisavô, sito na Avenida Bela Vista, pressuposto nº 64.

Palheiro que fora da Joana Càloa


Quando me perguntam donde vem a minha tendência marítima, a “dita paixão pelas coisas do mar e ria”, justificava-a pelos genes de meu avô Pisco, capitão dos tempos em que se ia, só à vela, à Groenlândia e sócio ab initio da Empresa Testa & Cunhas. Ele, que me levava, quando menina, a ver a chegada do barco do mar, aqui, na Costa Nova.

Costa Nova – Anos 50 – Ida ao mar


E, à seca, muita, muita vez, para saborear uma lasquinha de bacalhau salgado, surripiada das pilhas, às escondidas.
Mas não é só. Passei agora a conhecer a existência da bisavó, de fibra marítima, que tive, a Joana Càloa.

Fotografias – Amável cedência das Irmãs Marques, de Senos da Fonseca e arquivo pessoal da autora

Costa-Nova, 12 de Agosto de 2008

Ana Maria Lopes



1 comentário:

João Reinaldo disse...

Parabéns à Ana Cálôa; não sendo uma verdadeira praticante das artes do mar, é, como a sua bisa, outra "arraisa" a pesquisar e a transmitir-nos estes conhecimentos tão enriquecedores.
Continue, arraisa Ana.
JR