domingo, 11 de maio de 2014

Uma janela para o sal - XIV

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A encher o monte...
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Sal tirado e atirado...
A encher o monte...que o dia é longo e sol já queima! – incita o marnoto.
Eles, moços e marnotos, homens de força bruta, seguem o ritmo do tempo e da produção, porque a razão, essa, já lá não mora, tamanha é a canseira.
Se o tempo aquece é ver crescer os montes pelos malhadais…e eles, com carregos à cabeça por esses liames em direcção à eira, ao monte que os guia.
Começam por estrelar na eira a primeira canastra – honra será dada a quem a merecer!
Cestas de sal para ali se vão arrimando, dispostas em círculo formando uma estrela ou mancheia.
Depois de inúmeras viagens, por agrestes veredas, o marnoto junta o sal em monte ou em mula (serra) – a eira o ditará.
 
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Quando o homem já não alcança o píncaro, é necessário abrir roda ao monte, esculpindo-o empiricamente. Descarrega o sal na saia, alarga o monte e um novo coruto formar-se-á.
Sob um céu azulino envolto em novelos de algodão recorta-se a figura de uma serra de sal. E, subindo-a, homem e sombra, unidos num só esforço, andejam pela prancha cravada de sal com a canastra à cabeça, a transbordar... de tudo!
Nesse admirável cenário observa-se um corrupio de corpos que luzem de moira, sob sol intenso A acção dá-se ali mesmo, nesse palco de sal. E a cena do dia repete-se, vezes sem conta,… projectada sobre branca tela – o filme de uma vida...
Será uma imagem banal ou um ex-libris do salgado lagunar?
 
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E eis o moço do sal, de corpo esbelto e pele bronzeada. Os seus músculos retesam ao longo da íngreme subida, tal é o esforço. Ele corre, sobe e desce, carrega e descarrega, tira e atira aquilo que brota do «chão» e enche os montes... o puro cristal!
Mas não perde a compostura!
Elegante e sereno no seu caminhar, tal como equilibrista sobre corda de circo, ele encena o seu «número» ali mesmo, subindo o monte.
Além, plasmado, o marnoto achega o sal que ali se vai arrimando e alisa o coruto...
Que belo monte! E que bem decorado está!
Quantas canastras de roda se relevarão em seu redor?
Cálculo empírico o desta gente do sal: oito, de roda... dá um barco ou um vagão
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Pés fincados no sal, corpo em equilíbrio. O homem projecta-se no espaço e ampara-se no impulso do sal arremessado, tal é a perícia e a força.
Eis a última canastra...
O marnoto arrima o sal e remata o coruto desse monte, num gesto final de arte e composição geométrica – um artista, um escultor do sal!
O gesto congela-se no tempo... O homem continua na labuta, dia após dia, enquanto houver sol, vento e água da ria. Enquanto houver um querer e coragem para o fazer!
O corpo molda-se à canastra que, cheia ou vazia, completa a figura do salineiro.
 
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No regresso do carrego, o marnoto desce, hábil, a íngreme ravina de sal, de uma serra branca que se alonga pela eira, aguardando a sua sorte...
Sob intenso sol, esse homem musculado e bem moldado, ali plasmado na paisagem, exala e escorre suor e moira, aos quais, grossos cristais se colam sobre o peito salgado e molhado.
A pele curada, dura, gretada e queimada pelos ares da marinha, deixam antever um longo «curtir» que lhe roubará anos de delicadeza... e essa, não é apanágio destes homens, mas sim a rudeza que a Natureza lhes dita.
É esse o seu tempero de vida, o da faina salineira!
Ali, ao tempo, todo ele transpira sal... todo ele respira sal!
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Agosto de 1961, algures, na ria…
 
Eram montes e montículos...
Dava gosto vê-los trepar, afilados para o céu, adornados por canastras de roda em relevo, desenhadas por mãos calejadas - era de uma grande beleza assimétrica, repleta de cálculos empíricos, mas precisos.
Semeados por esses malhadais fora, ria adentro, via-se sal a montes... até onde a vista se alongava e se perdia num horizonte salpicado de brancos cones.
Era a nossa paisagem lagunar, salgada e suada... sulcada por estilete de homem rude, mas sábio.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias.
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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10| 12 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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3 comentários:

Al Marinheiro disse...

Independentemente da maior ou menor participação nos textos aqui publicados, a verdade é que a 'blogger' não cessa de nos brindar com cada vez mais saborosos nacos de prosa, dignos de figurarem nos mais diversos manuais escolares.
Por quanto vamos conhecendo da vida e obra dos filhos dessa terra marinheira, ocorre-nos parafrasear um texto da nossa infância, dizendo:
Ditosa terra que tais filhos tem.
Parabéns.
Al bino Gomes

Ana Maria Lopes disse...

Caro amigo Sr. Albino:

Agradeço em nome pessoal e da minha amiga Etelvina, que não tem o prazer de conhecer.
É uma apaixonada, também, por embarcações tradicionais, neste caso, lagunares.
Cumprimentos gratos.

João Reinaldo disse...

Mais palavras para quê ?
É uma artista ilhavense e TAMBÉM conhece de sal.
Para as duas... PARABÉNS.