sexta-feira, 5 de março de 2010

Signos pictóricos nos barcos - I



Já desde tempos imemoriais (existem vestígios, na civilização egípcia) que o barco é considerado um ser vivo, um ente anímico e, como tal, com determinadas tradições, assim tratado.
Durante a própria construção, em certas zonas do país, sobretudo nortenhas, ainda se usam determinados sinais protectores, para que esta corra sem incidentes, protegida de maus-olhados ou malquerenças.
À embarcação é atribuído um nome feminino (hoje já não é tanto assim), que lhe é conferido por uma madrinha, o que sugere a ligação a uma ideia de fertilidade.
A cerimónia do bota-abaixo é toda ela cheia de rituais, plenos de significado simbólico.

O uso de talismãs ou amuletos, a bordo, cada vez mais caída em desuso (par de chifres de animais, signo-saimão, ferradura, figa, etc.), fazia parte integrante do imaginário popular, sempre na defesa da própria embarcação de tudo quanto fosse ruim.

Para além de objectos em si, também existem signos pictóricos, que funcionam igualmente como protecção mágica dos barcos. São de vária estirpe, mas aquele que mais me chamou a atenção, até porque nesta região não é habitual, foi a pintura de um gigantesco olho, à proa, a bombordo e estibordo.
Os pescadores do centro e sul do país chamam cara do barco à zona da proa, de um e outro lado do casco, zona, normalmente, destacada por pintura a cor diferente e guarnecida, tantas vezes, com a imagem de olhos.
O barco com olhos veria melhor o caminho, em dias de nevoeiro e encontraria mais facilmente os bons pesqueiros?...

O significado dos olhos, ainda que estes, no imediato, com feição mais restrita de amuletos contra o mau-olhado, não pode dissociar-se da sacralização do barco pela sua consagração a uma divindade.
Do antigo Egipto, adoptaram-no os fenícios, os gregos, os romanos e, assim por diante, até os portugueses, em cujas embarcações o encontramos ainda.
Já na antiga Grécia, desenhar ou gravar olhos nos objectos servia de mágica protecção contra o mau-olhado, para os defender e a seus donos das invisíveis forças do mal. No caso das embarcações, parece que a sua origem é atribuída a Ulisses, lendário guerreiro grego, em cuja barca estaria representado o olho de Zeus.

Se têm alguns efeitos em termos de protecção, não sei, mas lá que são bonitos, são!
Os mais graciosos e pormenorizados olhos, num processo de simplificação, podem ter dado origem a outros símbolos bastante mais singelos: círculos, estrelas, cruzes ou imagens.
Exemplos dos casos mais expressivos, que ao longo de quarenta anos, fui encontrando, ao longo do litoral centro e sul do país:

Foi na Ericeira dos anos sessenta que deparei com o primeiro exemplo deste tipo de decoração, tão do meu agrado.

Lancha típica da época


Um grande, pormenorizado e expressivo olho decorava, igualmente, a cara branca, não delimitada, deste belo saveiro, na Costa da Caparica, por volta de 1965.

(Cont.)

Ílhavo, 5 de Março de 2010

Ana Maria Lopes

2 comentários:

David Luna de Carvalho disse...

Este é um dos assuntos que muito me interessa, até porque a Muleta também surge com olhos em algumas gravuras. Obrigado por o ter trazido à liça!

Anónimo disse...

É interessante que nas pinturas de ceramica gregas os navios tinham um desenho semelhante na proa... E podemos ligar com «Aveiro A» onde segundo o CNANS existe um achado de uma barca de construção local com grande influencia mediterranica...



Antonio Angeja