Para avaliar da grandiosidade que constituiu a actividade do moliço e a sua comercialização, em tempos idos, podemos observar o mapa dos cais e desembarcadouros, na Ria de Aveiro, pelos anos 40, em que se procedia à sua carga, secagem ou venda, conforme os casos.
Pelos anos 80, era já bem diminuta, não passando de uma amostra cada vez mais escassa.
O Bico da Murtosa, a Mama Parda, a Bestida, o Pardilhó e, sobretudo, os terrenos marginais inclinados, entre a Torreira e o Areão, eram pelos anos oitenta, os pontos mais notórios de descarga e transacção de moliço.
Entre as Gafanhas da Encarnação e da Vagueira também se observavam, raramente, algumas marés, normalmente, recolhidas por bateiras.
Nessa altura, a comercialização do moliço era feita em verde; noutros tempos, também se fazia em seco, essencialmente quando se destinava aos terrenos da zona sul da ria (Areão, Quintã-Boco), mais distantes, relativamente aos locais onde era arrastado.
Hoje, é nula a transacção, porque nem se apanha e nem sequer o há. É uma actividade completamente morta.
E por falar em Cais do Areão, que já visitara nos anos 80, completamente desactivado, a placa de sinalização, na estrada florestal, em passagem para a praia de Mira, chamou-me a atenção e levou-me lá, de novo.
Ainda existiria?
Numa inscrição gravada nuns restos de muralha, consegue, a custo, ler-se: M. N. 1948. Provavelmente, as inicias de Matas Nacionais e a data.
Matas Nacionais – 1948
E o vazio, o silêncio, a ausência do bulício e movimento de outrora, são inspiradores, mas chocantes.
O Cais do Areão de hoje
Para onde foram tantos barcos moliceiros que povoavam, animavam e davam vida ao mesmo espaço, em foto conseguida, através do Sr. Capitão Francisco Paião, proveniente do espólio de seu Pai, o saudoso Capitão Almeida, no ano de 1950?
Cais do Areão, em 1950
Por sermos de Ílhavo, pessoa amiga alertou-nos para o papel curioso que tivera no Cais do Areão, um ilhavense de famílias conhecidas.
Para confirmar os dados, fui junto da Senhora D. Cilinha Matias, sobrinha do dito conterrâneo, que me confirmou:
Em fins de 40, o Manuel «da Lúcia» – irmão do Pai, Senhor Cap. João Matias (também conhecido por João da Lúcia), era o guarda-rios estabelecido no Cais do Areão, onde era muito estimado, vivendo no palheiro, então ali existente.
Era ele quem calculava a carga dos moliços desembarcados, destinados aos campos da Gândara, e cobrava o imposto para o Estado.
Apesar de uma deficiência numa mão (resultante de paralisia), que mantinha permanentemente junta ao corpo, era um feitio brincalhão, bem disposto e amigo da pândega.
Ora, nesse tempo, havia racionamento de produtos essenciais. Estávamos no pós-guerra e o açúcar e, principalmente, o azeite eram difíceis de adquirir. Aos seus amigos, o Manuel «da Lúcia» arranjava maneira de os fornecer. Estes produtos vinham de burro para Ovar ou Murtosa e um e outro arrais, em troca de uns escudos, embarcavam-no na proa do moliceiro e descarregavam-no no Areão, à guarda do Manuel «da Lúcia», que logo dava um salto de bicicleta a Ílhavo a avisar os amigos que a encomenda chegara. De noite, pela estrada da mata, correndo o perigo de encontrar a guarda, que era, ao tempo, incorruptível, lá vinham aqueles buscar o azeitinho e açúcar, trazendo ao amigo Manel «da Lúcia» uns garrafões de tinto bairradino, que ele distribuía pelos arrais seus amigos. Nesses dias o Manel arranjava sempre uma caldeirada a preceito confeccionada na proa de um moliceiro, em animada festa.
E assim vai a vida! E a vida que os lugares escondem!... Ao menos, recordá-la, enquanto há memória…
Fotografias – Arquivo pessoal da autora
Ílhavo, 14 de Outubro de 2009
Ana Maria Lopes
1 comentário:
"...Ao menos, recordá-la, enquanto Há memória..." .
Que bela frase para terminar tão bela descrição.
Obrigado por nos fazer recordar!
Enviar um comentário