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Há coincidências curiosas e esta é
uma delas. Tive de ultrapassar as 6 décadas de existência para saber que a
minha bisavó materna tinha sido Joana Càloa, “arraisa” das companhas do Sr. João da Cruz, da Costa-Nova. Ou
melhor, souberam por mim e depois também fiz alguma coisa por me esclarecer
melhor.
Uma tarde, por finais do mês de Abril,
há 16 anos, encontrámo-nos, casualmente, à porta do Museu, eu, o Francisco
Calão e Senos da Fonseca. Este interpelou-nos, no sentido de, na qualidade de
bisnetos de Joana Càlôa, eventualmente, podermos ter alguma fotografia dela,
por casa. Ambos franzimos o nariz, encolhemos os ombros e achámos que não
tínhamos e que não seria fácil conseguir.
Claro, foi a minha primeira
impressão, mas não descansei. Porque o assunto me interessava, comecei a pensar
numa maneira de a tentar obter e de saber mais histórias da tal bisavó. Pensei,
pensei… relacionei as famílias e decidi fazer, no dia seguinte, uma visita às
Irmãs Marques, que achava terem boa memória e muito saberem de factos antigos.
Confirmou-se… Joana Càloa era sua avó materna, mãe de Nazaré Correia, com quem
sempre vivera.
Mulher trabalhadeira, valentona,
bonita, esbelta prazenteira, a Joana tinha sido casada com João Simões da
Barbeira (o Pisco) e fora…arraisa, como ela própria se intitulara, nas
companhas da Costa-Nova. Morreu em 1935 com 72 anos. Teria nascido lá por 1863.
Entendi, então, a razão de ser do
nome do meu avô, que nunca tinha percebido muito bem – Manuel Simões da
Barbeira (o Pisco), tal como reza na placa da campainha da minha casa da
Costa-Nova – CAPITÃO PISCO – 1º ANDAR, que fiz gosto em manter.
E fotografia da minha bisavó, lá a tinham, religiosamente guardada, tendo-ma emprestado amavelmente, para digitalizar.
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Fizeram ainda questão de me mostrar a foto de parede do meu bisavô, que decorava a sala de entrada, que também havia sido marítimo, tendo ido trabalhar para Sesimbra, no conserto das redes de cerco do atum.
Então e as coincidências?
Em 2009, Senos da Fonseca, no livro “Costa Nova do Prado – 200 Anos de História e Tradição”, ao tratar os ícones da referida praia, dá a lume, entre outros, a “arraisa” Joana Càlôa.
Transcrevo algo do que refere:
Era uma mulher que para lá de ser muito activa, despachada e
trabalhadeira, tinha a seu encargo o desempenho do cargo de «arraisa» – ou governadora de terra, a quem eram remetidas as tarefas de
orientação da Companha (…).
Mulher fisicamente poderosa, mas simultaneamente bonita, airosa e
prazenteira, tinha a elegância curva e estendida da proa do meia-lua. Braços
longilíneos e poderosos a parecerem os remos do Xávega; olhos escuros,
profundos, onde se acolhia o turbilhão do mar e de onde ressaltava a grande
coragem que a levava a não hesitar, na falta de um tripulante, a emprestar uma
mão ao cambão, remando como um maior. E à falta de reçoeiro, era ver a Joana a
embarcar no meia-lua, não lhe faltando, nem jeito nem força, e muito menos
quebreira, para o ir largando como mandavam as regras. (…)
Era mãe de quatro filhos, todos eles tendo um nome diferente (Manuel da Barbeira, mais tarde conhecido por Cap. Pisco, Francisco Càlão, mais tarde o Cap. F. Càlão, David – oficial da Marinha Mercante que morreu muito cedo – e D. Nazaré Marques). Todos eram, contudo, filhos de seu marido João Simões da Barbeira (o Pisco).
A Joana foi nomeada entre os símbolos
humanos da Costa Nova, simples no ser,
grandes no arcaboiço heróico.
Com alguma dose de especulação, põe a hipótese, que subscrevo, de a figura da Joana ter servido de fonte de inspiração a Eça de Queirós, ao descrever a personagem de “Joana“ em “A Tragédia da Rua das Flores”, como corpo de estátua, com uma solidez ancestral das mulheres da Ria de Aveiro (…) onde havia um calor morno, dissolvente, delicioso, estonteador.
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Não esqueçamos que Eça visitara
frequentemente a Costa-Nova, pelos anos 80 do século XIX e era um amante das
companhas, onde poderia ter encontrado a Joana. Outra coincidência?
Somos vários bisnetos/as que, ao todo, julgo, sermos dezassete. Serei a mais velha. A Luísa Càlão, curioso, é a actual proprietária do palheiro ocre, fielmente restaurado, que era da sua bisavó, sito na Avenida Bela Vista, pressuposto nº 64.
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Quando me perguntam donde vem a minha tendência marítima, a “dita paixão pelas coisas do mar e ria”, justificava-a pelos genes de meu avô Pisco, capitão dos tempos em que se ia, só à vela, à Groenlândia e sócio ab initio da Empresa Testa & Cunhas. Ele, que me levava, quando menina, a ver a chegada do barco do mar, aqui, na Costa Nova.
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E, à seca, muita, muita vez, para
saborear uma lasquinha de bacalhau salgado, surripiada das pilhas, às
escondidas.
Mas não é só. Passei agora a conhecer a existência da bisavó, de fibra marítima, que tive, a Joana Càloa.
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Ílhavo, 25 de Junho de 2024
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Ana Maria Lopes
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