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Costa-Nova, 2ª feira, 12 de Agosto de 1985
De entre as artes – a pesca sempre foi produto de engenho, arte e esforço – que antigamente se praticavam ao longo dos canais da ria, senti desde muito nova uma atracção pela arte do saltadouro. Impressionava-me a complexidade do enredado e do capricho posto na sua botadura, como que construindo um caracol para onde as tainhas espavoridas pelo batuque do maço no fundo da bateira, ou pelo espalmar das varas chicoteando a mansidão das águas, as obrigava a entrar na sua bocarra, enfeixadas no anel, até que, procurando a fuga, saltavam espavoridas aterrando nas abas da caracoleta, entrelaçadas nas malhas que as prendiam, à medida que estrebuchavam para se libertar. Menina e moça, quando ainda havia muitos saltadouros na ria, à hora do jantar, na sala da frente quase debruçada sobre a ria, ouvia-se distintamente aquele som ritmado, rufado, como que chamando a dança ritual.
Nesse tempo, a ria quase beijava o degrau da porta do palheiro; agora que a levaram para longe, para beber com os olhos e encher os sentidos com a sua serenidade encantadora ou apreciar os seus arrufos embravecidos, somos nós que temos de andarilhar para ir ao seu encontro.
Naquele dia, perguntava-me se ainda haveria alguma dessas artes em vias de extinção com o andar dos tempos.
Recebi com agrado a notícia de que o Ti Manel das Tainhas ainda usava o saltadouro.
Pelas 10 horas da manhã, numa segunda-feira de Agosto, fui ao encontro do Ti Manel das Tainhas. Não é muito comunicativo, mas é simpático, afável e lá vai dando algumas explicações. Tem 78 anos, nasceu na Murtosa, mas vive na Costa-Nova, desde criança. Alto, magro, tisnado do sol, um pouco curvado, pelo mister e pela idade, mora, agora, numa recoleta de um palheirinho riscado de azul e branco, na Lomba, de onde desce, todas as matinas, invariavelmente, as escadas do lado sul, que desembocam no largo Arrais Ançã. Com facilidade persigo-o da minha casa, andando no seu encalço e escolhendo o momento mais oportuno para o interpelar.
Veio da Murtosa, com barco e redes, e aqui, na «nossa» ria, sempre se dedicou ao saltadouro. Já o seu pai se dedicava a esta arte, no Verão.
Tinha sabido pelo Miguel que a bateira do Ti Manel, a velha e inconfundível bateira, de bica bem levantada, a Preta, por ser embreada a negro, não estava amoirada no local habitual.
Procurámo-la e, um pouco mais a sul, encontrámo-la. Ao nosso chamamento, libertou a Preta da estaca e com um leve impulso abicou à margem, para nos falar.
O Ti Manel recebeu-nos afavelmente. Muito embora inquisilando o meu interesse pelo assunto, pôs-se inteiramente à minha disposição para me elucidar sobre a técnica e as manhas postas na arte de empalmar as tainhas saltadoras.
O Ti Manel tinha saído de casa às seis da manhã e ia esperando pela maré, como se as horas, para ele, não contassem. Batiam as dez, na torre da Igreja da Gafanha do Carmo.
O Ti Manel e a Preta eram um estático e belo contra-luz inserido na paisagem.De entre as artes – a pesca sempre foi produto de engenho, arte e esforço – que antigamente se praticavam ao longo dos canais da ria, senti desde muito nova uma atracção pela arte do saltadouro. Impressionava-me a complexidade do enredado e do capricho posto na sua botadura, como que construindo um caracol para onde as tainhas espavoridas pelo batuque do maço no fundo da bateira, ou pelo espalmar das varas chicoteando a mansidão das águas, as obrigava a entrar na sua bocarra, enfeixadas no anel, até que, procurando a fuga, saltavam espavoridas aterrando nas abas da caracoleta, entrelaçadas nas malhas que as prendiam, à medida que estrebuchavam para se libertar. Menina e moça, quando ainda havia muitos saltadouros na ria, à hora do jantar, na sala da frente quase debruçada sobre a ria, ouvia-se distintamente aquele som ritmado, rufado, como que chamando a dança ritual.
Nesse tempo, a ria quase beijava o degrau da porta do palheiro; agora que a levaram para longe, para beber com os olhos e encher os sentidos com a sua serenidade encantadora ou apreciar os seus arrufos embravecidos, somos nós que temos de andarilhar para ir ao seu encontro.
Naquele dia, perguntava-me se ainda haveria alguma dessas artes em vias de extinção com o andar dos tempos.
Recebi com agrado a notícia de que o Ti Manel das Tainhas ainda usava o saltadouro.
Pelas 10 horas da manhã, numa segunda-feira de Agosto, fui ao encontro do Ti Manel das Tainhas. Não é muito comunicativo, mas é simpático, afável e lá vai dando algumas explicações. Tem 78 anos, nasceu na Murtosa, mas vive na Costa-Nova, desde criança. Alto, magro, tisnado do sol, um pouco curvado, pelo mister e pela idade, mora, agora, numa recoleta de um palheirinho riscado de azul e branco, na Lomba, de onde desce, todas as matinas, invariavelmente, as escadas do lado sul, que desembocam no largo Arrais Ançã. Com facilidade persigo-o da minha casa, andando no seu encalço e escolhendo o momento mais oportuno para o interpelar.
Veio da Murtosa, com barco e redes, e aqui, na «nossa» ria, sempre se dedicou ao saltadouro. Já o seu pai se dedicava a esta arte, no Verão.
Tinha sabido pelo Miguel que a bateira do Ti Manel, a velha e inconfundível bateira, de bica bem levantada, a Preta, por ser embreada a negro, não estava amoirada no local habitual.
Procurámo-la e, um pouco mais a sul, encontrámo-la. Ao nosso chamamento, libertou a Preta da estaca e com um leve impulso abicou à margem, para nos falar.
O Ti Manel recebeu-nos afavelmente. Muito embora inquisilando o meu interesse pelo assunto, pôs-se inteiramente à minha disposição para me elucidar sobre a técnica e as manhas postas na arte de empalmar as tainhas saltadoras.
O Ti Manel tinha saído de casa às seis da manhã e ia esperando pela maré, como se as horas, para ele, não contassem. Batiam as dez, na torre da Igreja da Gafanha do Carmo.
– Então, Ti Manel ?!… Hoje vai botar o saltadouro?
– Inda num sei, istá uma arage. Bamos a ber se ela não enrija, se não bota a norte. A auga ainda está muito baixa, bai botar só lá p’rá uma hora.
– Se Vossemecê não se importasse, poderíamos voltar aqui, para irmos consigo na bateira?
– A Senhora banha lá p´ró meio-dia, pois se a auga estiver mais calma, eu boto o saltadouro.
Esperámos – eu e o Miguel –, mesmo que para tal deixássemos de ir à praia. A minha ansiedade de conversar com o Ti Manel, de ver e apreciar o saltadouro era tal, que não podia perder a oportunidade.
E voltámos. O sol ia a pino, a água corria para sul e o sol acalmara adoçando a superfície da ria. Chegados à sua beira, aproou, de novo, para embarcar os novos tripulantes, na bateira.
(Cont.)
Costa-Nova, 5 de Agosto de 2009
Ana Maria Lopes
Boa tarde.
ResponderEliminarAprecio especialmente o facto da Drª. nos transmitir as frases do Ti Manel escrevendo tal como ele fala. É algo que me faz perguntar se o Ti Manel ou por exemplo os pescadores das Caxinas (entre tantas outras comunidades) falam "português errado".
A minha esposa, de nacionalidade polaca, começou a aprender português este ano com um professor de Lisboa. Sendo que o contacto dela com Portugal é principalmente no Norte, o português que conhece tem o sotaque do Norte e várias vezes foi "corrigida" pelo professor. Tal faz-me perguntar se pessoas como o Ti Manel ou os pescadores das Caxinas devem ser "corrigidos". Óbviamente a minha resposta é que não, ainda mais quando Portugal "nasceu" no Norte.
Aguardemos pelo resto do seu artigo.
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Boa tarde,
ResponderEliminarMaravilhoso. Uma delícia de ler. Parece que se está a partilhar a cena. Estou ansioso pelo próximo capítulo.
Parabéns.
Martins
É por haver pessoas com sensibilidade e interesse pela ligação do Homem ao seu meio,que ainda vamos tendo e colhendo o sabor dos velhos tempos.
ResponderEliminarParabéns e o meu obrigado.
João Marçal