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Chegara
o “meu” momento. Pequenina, no meu vestido de veludo violáceo, pasmada perante
a gigantesca, agressiva e pontuda roda da
proa, olhava confusa para todo aquele espectáculo que me envolvia e no qual
iria participar.
Subi
para um “mocho” (banco). Ordenaram-me que quebrasse a tradicional garrafa de
espumante contra a roda da proa,
exercício em que apesar de treinar afincadamente a pontaria, falhei, ficando
desiludida.
Não
tendo sido à primeira, optaram por me colocar nas mãos um martelo a que me
agarrei, com o qual, com toda a minha gana, força, nervosismo e entusiasmo,
quebrei, finalmente!, a garrafa.
O
barco foi bem regado, mas, também o champagne cresceu o suficiente para nos
aspergir, a mim, ao meu pai, e ao Sr. Bispo. Alegria plena!
Da
boca comovida de Mestre Manuel Maria Mónica saem palavras carregadas de emoção:
– “Vai descer este navio, em nome de Deus e do Estado Novo”.
E,
dirigindo-se ao Almirante Américo Tomás, pediu-lhe:
– “Corte V.ª Ex.ª. o cabo da bimbarra”.
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Chegara
o momento do clímax. Suspense! Onde a
emoção nos assola o interior e nos faz interrogar com o olhar. Que alvoroço! O
barco deslizará na carreira?! Não
desliza?! Tomba?! Não tomba?! O espectro da Nau Portugal não estava muito
distante e esquecido (7 de Julho de 1940), se bem que a confiança no mestre
construtor não justificasse os receios de toda aquela gente que assistia ao
bota-abaixo. Operários do estaleiro, de maçaricos em punho, procedem atarefados
e pressurosos às últimas afinações na carreira!!!
Tudo teria de estar perfeito para que o “São Jorge” descesse, sem atribulações,
em perfeito equilíbrio, carreira abaixo, até entrar e repousar na ria.
Após
o golpe do cabo, o navio começa a
deslizar. Suavemente, primeiro, depois de terem sido retiradas as escoras, ao mesmo tempo que vão tombando
os madeiros soltos do berço que o envolvem, amparando-o.
Acelera de seguida até penetrar nas águas da ria, ansiosas de o acolher, por
entre o grande entusiasmo exterior: estardalhaço de morteiros, zumbido emotivo
das sirenes, dos barcos próximos e dos estaleiros, tudo participando no momento
festivo que se desenrola aos nossos olhos especados e atarantados com tanta
faina. Alegria geral de todos quantos assistem ao acto, partilhada por entre
palmas, gritos e exclamações! Nasceu uma nova embarcação, neste caso, destinada
a uma tarefa árdua, forte e perigosa, a pesca do bacalhau, que reteria por seis
meses, nos mares longínquos da Terra Nova e Groenlândia, uma tripulação, saudosa
da Família. No bota-abaixo, era hábito embarcarem no navio apenas o capitão e
alguns pescadores para a manobra dos cabos e uns poucos operários do estaleiro,
preparados para qualquer eventualidade. Que sensação de ansiedade, êxtase e
respeito!
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Imediatamente após a entrada na água, já com o navio afastado da carreira, pequenas embarcações surgem de todos os lados: dóris, botes, bateiras, para aproveitar madeiras, sarrafos, cunhas e calços que, entretanto, o navio arrastara consigo, na descida. Que belo espectáculo!!!!!!
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O
ser madrinha de barcos foi um desígnio, que tendo começado por mim – a mais
nova! –, percorreu as mulheres da família: a minha Avó, a minha Mãe, e eu bisei
com o baptismo do marisqueiro “Calypso”, nos Estaleiros de S. Jacinto, em Julho
de 2000.
A construção em madeira estava em vias de extinção; o aço vinha-a substituindo com todas as vantagens que proporcionava a esta indústria da construção naval. As cerimónias também se foram alterando – perderam toda a pompa e circunstância das “encenações” do antigamente, destinadas a exacerbar determinados símbolos, glorificando-os.
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Ílhavo, 28 de Janeiro de 2021
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Ana Maria Lopes
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