quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Bota-abaixo do "São Jorge" (Parte II)

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Chegara o “meu” momento. Pequenina, no meu vestido de veludo violáceo, pasmada perante a gigantesca, agressiva e pontuda roda da proa, olhava confusa para todo aquele espectáculo que me envolvia e no qual iria participar.

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Ao longe, pronta para o acto solene
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Subi para um “mocho” (banco). Ordenaram-me que quebrasse a tradicional garrafa de espumante contra a roda da proa, exercício em que apesar de treinar afincadamente a pontaria, falhei, ficando desiludida.

Não tendo sido à primeira, optaram por me colocar nas mãos um martelo a que me agarrei, com o qual, com toda a minha gana, força, nervosismo e entusiasmo, quebrei, finalmente!, a garrafa.

O barco foi bem regado, mas, também o champagne cresceu o suficiente para nos aspergir, a mim, ao meu pai, e ao Sr. Bispo. Alegria plena!

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Que grande banho!
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Da boca comovida de Mestre Manuel Maria Mónica saem palavras carregadas de emoção:

– “Vai descer este navio, em nome de Deus e do Estado Novo”.

E, dirigindo-se ao Almirante Américo Tomás, pediu-lhe:

– “Corte V.ª Ex.ª. o cabo da bimbarra”.

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Chegara o momento do clímax. Suspense! Onde a emoção nos assola o interior e nos faz interrogar com o olhar. Que alvoroço! O barco deslizará na carreira?! Não desliza?! Tomba?! Não tomba?! O espectro da Nau Portugal não estava muito distante e esquecido (7 de Julho de 1940), se bem que a confiança no mestre construtor não justificasse os receios de toda aquela gente que assistia ao bota-abaixo. Operários do estaleiro, de maçaricos em punho, procedem atarefados e pressurosos às últimas afinações na carreira!!! Tudo teria de estar perfeito para que o “São Jorge” descesse, sem atribulações, em perfeito equilíbrio, carreira abaixo, até entrar e repousar na ria.

 

Após o golpe do cabo, o navio começa a deslizar. Suavemente, primeiro, depois de terem sido retiradas as escoras, ao mesmo tempo que vão tombando os madeiros soltos do berço que o envolvem, amparando-o. Acelera de seguida até penetrar nas águas da ria, ansiosas de o acolher, por entre o grande entusiasmo exterior: estardalhaço de morteiros, zumbido emotivo das sirenes, dos barcos próximos e dos estaleiros, tudo participando no momento festivo que se desenrola aos nossos olhos especados e atarantados com tanta faina. Alegria geral de todos quantos assistem ao acto, partilhada por entre palmas, gritos e exclamações! Nasceu uma nova embarcação, neste caso, destinada a uma tarefa árdua, forte e perigosa, a pesca do bacalhau, que reteria por seis meses, nos mares longínquos da Terra Nova e Groenlândia, uma tripulação, saudosa da Família. No bota-abaixo, era hábito embarcarem no navio apenas o capitão e alguns pescadores para a manobra dos cabos e uns poucos operários do estaleiro, preparados para qualquer eventualidade. Que sensação de ansiedade, êxtase e respeito!

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Desliza na carreira!...
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Imediatamente após a entrada na água, já com o navio afastado da carreira, pequenas embarcações surgem de todos os lados: dóris, botes, bateiras, para aproveitar madeiras, sarrafos, cunhas e calços que, entretanto, o navio arrastara consigo, na descida. Que belo espectáculo!!!!!!

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Ganha posição!
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O ser madrinha de barcos foi um desígnio, que tendo começado por mim – a mais nova! –, percorreu as mulheres da família: a minha Avó, a minha Mãe, e eu bisei com o baptismo do marisqueiro “Calypso”, nos Estaleiros de S. Jacinto, em Julho de 2000.

A construção em madeira estava em vias de extinção; o aço vinha-a substituindo com todas as vantagens que proporcionava a esta indústria da construção naval. As cerimónias também se foram alterando – perderam toda a pompa e circunstância das “encenações” do antigamente, destinadas a exacerbar determinados símbolos, glorificando-os.

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Ílhavo, 28 de Janeiro de 2021

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Ana Maria Lopes


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