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Escolhi
este assunto para iniciar o blogue (2008), porque o recordo com enorme
nostalgia e saudade. Após quase 13 anos, resolvi revisitá-lo.
Num
sábado, 10 de Março de 1956, com 12 anos (há 65 anos), fui madrinha do navio-motor
“São Jorge”.
Há
em mim qualquer gene que me faz amar tudo que saiba a maresia, tudo o que é mar
e ria.
Havia,
então, assistido, só entre o público, a um bota-abaixo e a cerimónia
fascinara-me. Não me imaginava personagem principal do que para mim, com aquela
idade, era um conto de fadas.
Um
belo dia, aparece-me em casa, ali no Curtido de Baixo, o Sr. António Cunha,
então gerente da Empresa Testa & Cunhas, a convidar-me para madrinha do “São
Jorge”, que estava em construção.
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No estaleiro – 20 – 1 – 1956
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Porquê
eu? Que sensação! Parecia-me convite só para gente importante e crescida!
O
nervosismo e a ansiedade intensificavam-se à medida que a data se ia
aproximando… a “toilette” (vinha a fina flor da sociedade lisboeta ligada às
pescas), o quebrar da garrafa…
Passei
a treinar insistentemente nos troncos de laranjeiras do quintal, mas em vão! O
tronco ficava esfolado, mas o resistente vidro da garrafa de “champagne” cheia
de água, intacto… Havia de ser o que Deus quisesse. Tinha que partir a garrafa.
No
sábado escolhido, o dia estava soalheiro, mas com um ventinho norte a soprar
com alguma intensidade.
Pelas
13 horas da tarde, na estação de Aveiro, o Sr. Governador Civil, proprietários
do novo navio, autoridades locais, militares e civis e muita gente aguardavam o
Sr. Ministro da Marinha, Almirante Américo Tomás e sua comitiva que se
deslocara propositadamente a Aveiro em comboio foguete especial.
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Chegada à Estação de Aveiro
Teve
lugar no salão de festas do então famoso edifício do Teatro Avenida um lauto
almoço que a empresa proprietária ofereceu a cerca de trezentos convidados.
A
ementa constava de linguado à Colbert, arroz de pato à Beira Mar, leitão
assado; ovos moles regionais, fios de ovos, pudim de laranja, ananás ao Madeira
e café (sobremesa); vinhos tinto e branco das caves do Galo d’Ouro, espumante
Raposeira, aguardente de 1920 e licores (vinhos).
Usaram
da palavra algumas individualidades a desejarem as maiores felicidades à firma
armadora, à nova unidade e ao construtor. Pormenor curioso… os leitões, antes
de trinchados e servidos, desfilaram elegantemente em braço de criados, tal
passagem de modelos, dentro de pequenos “botes” embandeirados em arco,
construídos para o efeito.
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Pequenos dóris com os leitões
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Aguardava
a hora da maré o “São Jorge”, na carreira,
donairoso e altaneiro, na imponência da sua altura, de cores claras, hasteando
o mariato colorido, da proa à popa, esvoaçando ao vento.
Um
bota-abaixo na Gafanha é sempre um acontecimento festivo: no estaleiro e em
todos os caminhos em redor via-se muita gente para assistir ao sempre
emocionante espectáculo. Ansiedade! Emoção! Expectativa! E na ria, toda a frota
bacalhoeira, embandeirada em arco pela “camaradagem” de mais um navio que a ia
enriquecer.
O “São
Jorge” era um navio-motor que deslocava mil toneladas com capacidade
para catorze mil quintais de pesca. As suas características principais eram:
comprimento, 54,15
metros; boca, 10,48 m. e pontal, 5,62 metros. Embarcava
uma tripulação de 80 homens, entre os quais 62 pescadores. Dispunha de um motor
principal de 600 H.P. e motores auxiliares, guinchos, sonda eléctrica, radar e
câmara frigorífica para isco e conservação de alimentos, com capacidade de 60
toneladas. Foi seu primeiro capitão o Sr. João dos Santos Labrincha.
(Laruncho), de Ílhavo.
São Jorge – quis a empresa dar-lhe esse nome e eu, como
madrinha, ofereci-lhe uma bonita imagem do Santo a cavalo, de espada em riste,
a lutar com o dragão, que sempre viajou durante anos, a bordo, na Câmara dos
oficiais, até 1972, ano em que a empresa o vendeu. A imagem, depois de ter sido
cedida ao MMI. para a exposição “Faina
Maior” até 1999, voltou à procedência, ao fazer parte dos meus bibelots de estimação, para que olho com
enlevo. Definitivamente, há dois anos, ofereci-a ao Museu (MMI).
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A imagem do patrono
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Em
tribuna construída à proa da nova unidade, tomaram lugar muitos convidados e
personalidades, dentre os quais os Senhores Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João
Evangelista de Lima Vidal, Sr. Comandante Tenreiro, Governador Civil do
Distrito, Dr. Francisco do Vale Guimarães, Almirante Alves Leite, Director
Geral de Marinha; Engenheiro Higino de Queirós, presidente da C. R.C.B.;
presidentes das Câmaras Municipais de Aveiro e Ílhavo; Comandante António
Caires da Silva Braga, capitão do Porto de Aveiro; presidente e vogais do
GANPB., os comandantes militares de Aveiro, representantes oficiais da base
aérea de S. Jacinto e muitos armadores e capitães da frota bacalhoeira.
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Tribuna dos convidados, pela proa do navio
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Em
momento solene, sua Ex.ª Reverendíssima benzeu a nova embarcação, augurando-lhe
“um bom futuro, atendendo ao espírito verdadeiramente cristão de quantos nela
trabalharão em árdua e perigosa tarefa, confiados unicamente na fé em Deus”.
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Bênção do navio
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Antes,
porém, do lançamento, fizeram-se os discursos da praxe, falando primeiro pela
empresa armadora o Sr. António Cunha, seguido pelo Sr. Comandante Tenreiro, Sr.
Governador Civil e do Mestre Manuel Maria Mónica. Finaliza o Sr. Ministro da
Marinha:
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(…) O “São Jorge vai descer na carreira.
A este, outros navios se seguirão. É a tradição que se mantém. O Governo do
Estado Novo jamais deixa perder o que signifique valor nacional”.
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Oradores e convidados na tribuna
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Realçou-se
que o lançamento à água de um navio para a pesca do bacalhau representava um
acréscimo de riqueza e de trabalho, exprimindo a continuidade de uma política
que desde há 30 anos vem operando, em paz, uma transformação profunda na vida
da Nação.
Lá
no meu canto (dada a minha pequenez) nem era notada a minha presença; eu pouco
ou nada percebia daqueles “chavões” que mais tarde foram sendo desmistificados
à luz das épocas que lhes sucederam, susceptíveis de várias interpretações e
considerações.
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(Cont.)
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Ílhavo,
26 de Janeiro de 2021
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Ana Maria Lopes
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