sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Homens do Mar - José da Silva Cruz - 52


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Zé da Pardala
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José da Silva Cruz, mais conhecido por Zé da Pardala, oriundo de famílias modestas, era filho de Manuel Maria da Cruz e de Luísa da Silva Pardala, padeira famosa da rua do Casal. Nascido em Ílhavo em 13 de Novembro de 1915, morador na citada rua, era portador da cédula marítima nº 10208, passada pela Capitania do Porto de Aveiro, sem data.
Casou com Maria de Jesus Teles, o amor da sua vida, a 14 de Janeiro, de 1939, de quem teve dois rapazes, tendo enviuvado em 1947.
Concluída a instrução primária, deu a conhecer a seu pai que gostaria de ser maquinista na Marinha Mercante. Então, de aprendiz de serralheiro numa oficina em Aveiro, passou a trabalhador-estudante, em Lisboa, na Escola Industrial Fonseca Benevides, e depois a aprendiz de torneiro, também na capital.
Foi com 68 anos, que decidiu deixar-nos escritas as suas Memórias – 1927-1983, que, agora nos auxiliaram, nestas divagações, já que, por esses anos, ainda não havia acesso frequente aos dados da Comissão Reguladora da Pesca do Bacalhau, nem do Grémio.
Com a morte do pai e a falta de meios, a sua vida de estudante terminou. O recurso foi mesmo a pesca do bacalhau através de um pedido ao primo António dos Santos para o levar com ele, no lugre-escuna Santa Regina, antigo veleiro, de que era capitão.
E lá foi «o bom do Zé da Pardala», em Janeiro de 1933, para Massarelos, no Porto, para bordo do navio, em que terá feito a primeira viagem de moço – vida de uma dureza extrema, ainda por cima, naqueles tempos remotos. Entre as campanhas de 1934 e 36, permaneceu no mesmo navio, ascendendo facilmente na carreira profissional. Gostou mesmo daquela vida, apesar de cruel e lá foi de «verde», na viagem de 1934. Entre os «verdes», foi o melhor pescador – revela-nos. Nas safras de 35 e de 36, já foi como pescador «maduro», classificando-se entre os melhores do navio.
Foi sempre um trabalhador destemido, quer com mar bravo quer debaixo de névoa, sentindo vaidade nisso, e o pescar, para ele, era como que fosse um desporto. Nesta campanha, tinha havido algumas mudanças na tripulação, salientando que tinham levado o seu irmão mais novo, Manuel da Silva Cruz, mais conhecido por Necas da Pardala, como moço de câmara. O Necas revelou-se um rapaz esperto e bom trabalhador, e facilmente conquistou a simpatia de todos.  Quando o capitão o mandava «matar o bicho» aos homens, em vez de um copo de aguardente, dava dois, «lubrificação» que a todos agradava. Constou-nos que o capitão António dos Santos batia amiúde ao moço de câmara, este Necas, porque o garoto não regulava convenientemente a torcida do candeeiro a petróleo em relação ao bocal, daí resultando má queima e o enegrecimento do vidro do mesmo. Mas, um dia, o irmão Zé achou que já era demais, arriou-se pela escada da câmara abaixo, armado com a faca de escala, enfrentou o capitão e disse-lhe: «… se volta a bater no garoto, eu escalo-o…». A verdade é que o Nequinhas nunca mais apanhou nem se esqueceu nunca desta história, pois, foi ele mesmo que ainda há poucos meses, antes de morrer, a referiu a alguém.
Foi uma viagem muito fraca, esta de 1936 – nem sequer tinham ido à Groenlândia. Largaram para Portugal, em fins de Outubro, com pouco mais de meio carregamento. Tinha sido esta, a sua última viagem no Santa Regina, pois queixava-se o famoso Zé Cruz que o capitão António dos Santos fazia dele o bombo da festa, pois, como era da família, quando as coisas lhe corriam mal ou ao sentir-se aborrecido com qualquer membro da companha, era nele que «descascava» desalmadamente.
Estava decidido. Chegado ao Porto, saiu portaló fora e, de saco às costas, lá rumou a Ílhavo, onde era costume reunir-se com os companheiros e alinhar em grandes paródias. Um amigo perguntou-lhe se não quereria ir num navio novo, de ferro, ainda em construção nos estaleiros da Companhia União Fabril (CUF), com motor diesel, com frigorífico e outras melhorias de renome, para aquela época – era o famoso Creoula. Ajustadas as condições com o capitão e amigo, dizia ele, Aníbal Ramalheira, lá foram em princípios de Janeiro trabalhar para a Azinheira Velha, localidade junto ao Barreiro que servia de local de armamento, processamento e seca à frota do Bensaúde, para a viagem inaugural, em 1937.
Como o lugre-motor em construção ainda estava um bocado atrasado, os homens destinados ao Creoula, enquanto esperavam pelo navio novo, foram distribuídos pelos outros navios da casa – Neptuno, Hortense, Gamo e Gazela. amarrados lá na Azinheira. Mas, em Março, lá foram para os estaleiros da CUF, para aparelhar o Creoula. Saíram bastante tarde, no fim de Junho com destino à Groenlândia. Foi uma viagem curta.
Saiu equipado de Lisboa, na viagem inaugural em 1937, com botes para dois pescadores, à francesa, a que os nossos homens nunca se habituariam, pelo seu individualismo. No meu dóri, sou eu o capitão – afirmava o pescador – frase amiúde repetida, que o testemunhava. Assim sendo, o capitão viu-se obrigado a pedir botes sobressalentes de outros navios da Parceria, para poder prosseguir a faina.
O Creoula possuía uma câmara frigorífica para o isco, mas o Capitão Aníbal entendia que só os pescadores mais qualificados tinham direito a linhas de trol e a isca. Então, que fazer? como não tivesse isco, o Zé da Pardala arriou e, usando a imaginação, levou a sua velha espingarda, e toca de matar gaivotas e pombaletes, que voavam em volta do navio, cuja carne funcionava como óptimo isco para peixe grado. E a coisa foi-se repetindo, trazendo com frequência o bote carregado. Sendo um dos pescadores mais novos do navio, deu cartas e água pela barba aos azes da Fuzeta, Setúbal, Nazaré e S. Miguel.
Em Ílhavo, depois da chegada, tempo dos regabofes da praxe, das tainadas e noitadas, até que, em Janeiro de 1938, passados o Natal e Ano Novo ainda junto da família e dos amigos, em Janeiro de 1938, de novo, rumou para a Azinheira, para a safra seguinte, no Creoula – viagem que deixou muito que contar, neste caso, pela negativa.
No dia 10 de Outubro, em que o mau tempo vinha a piorar, já não se podia passar da proa à popa. O convés do Creoula era uma autêntica praia. A certa altura, temendo-se o pior, o navio meteu a proa ao mar e uma vaga enorme, cavalgou-o, varrendo-lhe o convés e saindo pela popa. Tal volta de mar, em toda a sua fúria, levou o imediato, Carlos Eduardo Miranda Calás, natural de Lisboa e mais 3 homens qua aí tiveram sepultura para sempre. Para além destas descomunais perdas humanas, esta montanha de mar levou também borda fora, 28 dóris, mesas de escala, selhas, barris e uma agulha magnética.
A retranca da mezena partiu-se em três, bem como a carangueja e o amantilho da vela grande.
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Bela imagem do Creoula a navegar... Foto de F. Paião
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A viagem de regresso foi de luto e muita tristeza, pois, para trás, nas profundezas do oceano, ficaram quatro companheiros de luta, apesar deste nosso amigo ter sido «primeira linha», no que tinha muito orgulho.
Tudo parecia correr bem.  Casou-se em Janeiro de 1939, com a sua mais que tudo, só que, uns oito dias depois do casamento, fora chamado para a Azinheira, já que lhe tinha calhado em sorte, ser um dos que ia para Roterdão, buscar o novo navio da empresa – o Argus – que a Bensaúde aí havia mandado construir. Era um magnífico navio, mas as saudades da sua amada, depois do casório fresquinho, eram mais que muitas. Mal chegaram a Lisboa, começaram os preparativos do navio para a viagem inaugural. Enquanto isso, algumas mulheres de marinheiros, bem como de oficiais, foram também para a capital para junto dos maridos, minimizando assim o tempo de tão grandes ausências.
Sob o comando de Aníbal Pereira Ramalheira, do imediato Hermenegildo Rodrigues do Passo, da Fuzeta e do piloto, o conterrâneo Manuel dos Santos Malaquias, lá o Zé da Pardala recorda que a sua posição a bordo, fora, durante quatro anos consecutivos, escalador e pescador especial, pois durante essas safras, pescara mais de duzentos quintais de bacalhau, por campanha. Com o navio carregado, ainda passaram pelo Grande Banco, para meter mais algum peixe, depois de este ter abatido. Havia mau tempo, com frequência, pelo que os dóris não arriavam. Durante um ciclone, uma onda apanhou, inesperadamente o capitão, atirando-o contra os dóris e o mastro, pelo que nunca mais foi o mesmo, de saúde.
E a rotina continuou, os preparativos do navio para a viagem seguinte (1940). Quem veio substituir o Cap. Aníbal, foi o Cap. Adolfo Paião, homem bem-educado e muito calado. Foi um ano de bom tempo e de muito bacalhau. De regresso, havia o primeiro filho – José Manuel Teles da Cruz – a esperá-lo, o que lhe provocou a maior alegria e forte emoção.
Na safra de 1941, nova mudança de oficiais. O capitão passou a ser João Pereira Ramalheira, o Vitorino, o imediato, Armindo Simões Ré e o piloto, o pai, Alexandre Ré, todos de Ílhavo. Com o seu feitio muito próprio, justo, mas, à moda dele, um dia, deu uma carga de porrada ao cozinheiro e à mulher – questiúnculas – que só não o matou, porque não calhou. A cena deu que falar no meio marítimo de Ílhavo, mas o capitão não se zangou com ele, porque não o sabia desordeiro – mas, algo se teria passado. As coisas lá foram andando.
Confessa-nos o Zé da Pardala que, naquele ano, quem tinha pescado mais peixe, fora ele, mas, o capitão Vitorino dera ao Francisco Laurencinha, também este um óptimo pescador da Fuzeta, os peixes que os moços tinham apanhado a bordo, saindo este, beneficiado. O que foste fazer, ó capitão? Essa atitude feriu a justiça do Zé da Pardala, que jurou ser essa, a sua última viagem ao bacalhau. E foi mesmo.
Nesse ano de 41, naufragara o Santa Quitéria, lugre-motor já velhote, com água aberta, comandado pelo conterrâneo capitão João Sousa. Como o Zé lá tinha um primo, de moço de convés, o António da Silva Rolo, pediu ao capitão se o podia ir buscar, ao que ele acedeu, mas recomendando-lhe cuidado, devido ao mau tempo. Lá foi catá-lo, passando o primo a dormir com ele. Era jovem, bem-educado, trabalhador e todos gostavam dele. No fim da viagem, foi-lhe feita a soldada como aos outros moços.
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Largada de botes, do Argus. Foto de AV.
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Por aqui ficou a epopeia do Zé da Pardala, no bacalhau. O que ele queria mesmo era emigrar para os Estados Unidos da América, como seu pai.
De início, a vida não lhe correu tão bem assim, mas como «self made man», corajoso, despachado e lutador, lá foi vingando e enriquecendo. Começou por trabalhar na agricultura, na Califórnia, onde permanecera até 1951.
O mar, sempre o mar, atraía-o e logo iniciara carreira na pesca do atum, no sul da Califórnia, que largara em 1965.
Com oportunidade de, nos Estados Unidos, voltar a estudar, não perdeu a ocasião e tirou um curso de maquinista. Não lhe faltando nem conhecimentos nem ocasiões, lá andou de maquinista, entre 2º e 3º, nos navios de passageiros e mercadoria, Président Wilson, Taylor, Eisenhower e noutros navios da companhia, até à reforma.
Intercalava estes períodos de trabalho com vindas de férias a Ílhavo, onde desfrutava dos encontros com amigos, das lambanças, das paródias e, mais tarde, de viagens pela Europa no seu Ford Mustang americano.
Já em Ílhavo, definitivamente, tinha uma casa nova com um bom recheio, na rua do Casal e até um pequeno bar, decorado com montes de recordações marítimas trazidas dos muitos lugares onde aportara, onde fazia gosto de receber os amigos, para comer uns peticos e beber «uns calmantes», como chamava às bebidas.
Até eu lá cheguei a ir lá, enquanto Directora do Museu, numa das vindas a Ílhavo do NTM Creoula, onde tinha andado e sempre visitava, com o comandante Sá Leal e os outros oficiais do navio, para uma boa cavaqueira, à moda do Zé da Pardala, servida de uns aperitivos e de uns «calmantes».
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No bar do Zé da Pardala, em Setembro de 1993
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Em jeito de epílogo, querem saber qual era uma das últimas vontades do nosso homem?
Gostava que o meu funeral fosse modesto e gostava de sair da minha casa na Rua do Casal, em Ílhavo, indo do meu Bar para o cemitério da vila, transportado num carro de bois, esse carro antigo, com os fueiros no seu lugar e que os bois fossem cobertos com uma manta preta ou vermelha (a cor para mim não conta), levando, no entanto, os cornos de fora. Ao passar à Igreja, os sinos tocarão em sinal de despedida, e que me levem, então, em paz, para junto da minha esposa de alguns anos, se tal for possível.
Perante tal insólito pedido, tive de me certificar como se tinham passado as coisas e, pessoa fidedigna garantiu-me que nada disso foi posto em prática, pois o encarregado de fazer cumprir tal desejo, por anómalo que era, nem sequer o tentou.
Partiu, o Zé da Pardala, mesmo sem ter sido levado no meio de transporte ambicionado, a 2 de Julho de 2009, com 93 anos.
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Fotos de arquivo da autora
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Ílhavo, 11 de Janeiro de 2019
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Ana Maia Lopes-

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