Capitão
Manuel Simões da Barbeira
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Chegou
a vez de tentar reconstituir o currículo marítimo de Manuel Simões da Barbeira
(Capitão Pisco), meu Avô, mas, dos
primeiros anos, não sei praticamente nada, nem sequer tenho quem mo rememore.
Começando pelo que sei, reportar-me-ei à bonita, elegante e prazerosa arraisa Joana Caloa, casada com João
Simões da Barbeira, o Pisco,
marítimo, de cujo casamento nasceram quatro filhos – Manuel Simões da Barbeira,
o dito Capitão Pisco, Francisco dos
Santos Calão, mais tarde o Capitão Francisco Calão, já lembrado, David, oficial
da Marinha Mercante que morreu muito cedo e uma filha, Nazaré Correia, mais
tarde, mulher do Capitão António Marques. Filhos do mesmo casal, todos com
nomes diferentes. Era, de certo modo, vulgar, por Ílhavo.
Caso
para dizer – em casa de ferreiro, espeto
de pau, – pois, do meu avô, nem uma foto a bordo, tenho. Fardado e de
estúdio e a que consta da ficha do grémio – são apenas as que possuo. Não era
propriamente tempo de se andar sempre a «bater chapas».
Se
tivesse de resumir a sua vida relacionada com o mar, diria, que teve uma
primeira parte, de cerca de 10 anos, como capitão de navios da praça da
Figueira da Foz, em que a Figueira estava na vanguarda da pesca bacalhoeira.
Comandou, de permeio, durante a campanha de 1919, o lugre-patacho Gazela
Primeiro, de Lisboa, e em 1921, sedeou-se na Gafanha da Nazaré, acabando a
sua vida de mar na viagem de 1942, com 57 anos.
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Desde
que possuo algumas provas, o Avô Pisco, com 23 anos, comandou o iate Mondego, de 1908 a 1911.
O
iate Mondego (1908-1917) foi construído em Setúbal, em 1899, com o nome
de Novo Flôr. A partir de 1908,
passou a chamar-se Mondego, na
Sociedade Pescarias Foz do Mondego e, posteriormente, ainda usou os nomes Nazareth e Apollo, tendo pertencido a mais empresas.
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O iate Mondego, in Ilustração
Portuguesa
O
Capitão Pisco, nas campanhas de 1912
e 1913, saltou para o comando do lugre
Golfinho, da praça da Figueira da
Foz.
O lugre Golphinho, em dia de bota-abaixo. 1912
Este navio teve uma
existência muito efémera, mas digna de se recordar. O Golfinho foi construído para a Empresa de Pesca da Foz do Mondego
por José Maria Bolais Mónica, nos estaleiros da Murraceira, na Figueira da Foz.
Foi, então, considerado o melhor e maior navio do seu tempo.
O seu bota-abaixo
tivera lugar a 3 de Março de 1912; porém, quando começou a deslizar, saiu da
carreira e enterrou o cadaste no
lodo. Só depois de porfiados esforços e do aproveitamento de outras marés vivas,
foi possível pô-lo a flutuar. A terceira viagem, tendo saído de Lisboa a 6 de
Maio de 1914, foi de um adeus sem fim…
Não fossem algumas
coincidências, e nada mais saberia, para lá do que ouvira dos meus avós.
Em meados dos anos 80,
pessoa amiga fez-me chegar às mãos cópia do Boletim
Mensal da Liga dos Oficiais de Marinha Mercante, ano I, nº 5 de Agosto, de
1914, intitulada Naufrágio do Golfinho que expunha o Protesto e
relatório do naufrágio e abandono do lugre português Golphinho, feitos a bordo do vapor inglez Corinthian, de cinco páginas.
Não tendo a intenção de
editar todo o relato, apenas respigo o seu texto, recuperando algumas passagens
que me parecem dignas de nota, respeitando a ortografia da época.
Por
amável deferência de nosso presado consócio Ex.mo Sr. Manoel Simões da Barbeira
publicamos o singelo e bem elaborado relatório de mar relativo á perda do seu
belo navio que… abalroou com um iceberg na noite de 29 de Maio p.p. O Golphinho que pertencia á praça da
Figueira era propriedade da Sociedade de Pesca da Foz do Mondego e era talvez o
melhor navio português que ia á Terra Nova.
O
capitão Barbeira e piloto sr. Arthur Oliveira da Velha são oficiais distintos
da especialidade a que se dedicam e foi devido á sua muita perícia que,
habilmente obstaram a que o navio sossobrásse, dando tempo a que conseguissem
passar para bordo do Corinthian, que
tomou todos os tripulantes, entre os quais José Pedro Martins em estado grave e
que infelizmente foi morrer ao hospital de Havre.
Só
quem anda nesta vida do mar, vida de constante combate contra inimigos
traiçoeiros e poderosos, pode avaliar o que seja pelo meio duma noite escura
sentir de repente o navio abalroar contra um obstáculo invisível e inesperado,
ouvir o ranger do cavername, o esfacelar do costado, o estalar dos mastros
partindo-se e a derrocada dos mastaréus, das enxárcias, dos cadernais, dos
estais, por entre o bater de pano, os gemidos dos feridos e os grito de todos!
Quanto animo e sangue frio precisa então ter o capitão para, pensando por
todos, os serenar e lhes salvar as vidas em perigo! Aí então sobressai a
grandesa da sua missão e a nobresa desta vida feita toda de dedicações obscuras
e de brilhantíssimos feitos quasi sempre ignorados!Foi de noite e com nevoeiro
que o Golphinho bateu na ilha de
gelo que por ali vinha no seu deslisar funesto, sem que nada a denunciasse. (…)
Serenados
os animos o capitão, que modestamente no seu relatório nunca fala em si, fez
tudo por salvar o navio, mas reconhecida a impossibilidade pelo péssimo estado
em que ficou após o abalroamento, tratou então de salvar as vidas confiadas à
sua guarda. Felizmente quando ia tomar a resolução de mandar abandonar o navio
entregando-se e aos outros a uma sorte incerta em pequenos botes, apareceu o
paquete inglez Corinthian da Allan
Line, em viagem de Montreal para o Havre, que prontamente se aproximou e os
recebeu a bordo. O seu Comandante fora de uma bondade extrema,
deixando os náufragos no porto de Havre e
d’aí vieram num paquete para Lisboa.
Era assim a vida do mar em 1914.
Nas
campanhas de 1915 a 1917, comandou o lugre-escuna
Figueira, que foi construído em
Inglaterra em 1904, tendo sido o ex-Becca
and Mary, até 1913, então
registado, na Figueira da Foz. Foi posteriormente vendido ao capitão de Ílhavo,
António José dos Santos, conhecido por Capitão Rocheiro, tendo sido registado em Aveiro, tornando-se no Alcion, em 1920.
Na
campanha de 1918, de aprestos, saco de lona e fardas, voou para o comando do lugre
Voador. Este esbelto navio fora
construído para a Sociedade de Pesca Oceano, da Figueira da Foz, por António
Dias dos Santos, em Fão. O seu bota-abaixo fora em 26.9.1911.
A
Gazeta da Figueira de 26 de Outubro
de 1912 refere que, a reboque do vapor Liberal, entrou a barra da Figueira, em
Outubro, o lugre Voador. Apesar de
construído em Fão, este navio veio em casco e os últimos acabamentos, incluindo
os mastros, teriam sido feitos na Figueira.
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Lugre
Voador. Figueira da Foz
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Esta foi uma das
fotografias, relíquia de um passado centenário, que, juntamente com a do Golfinho ornamentavam as paredes de uma
das recoletas da casa de praia que
foi dos meus avós, na Costa Nova, demolidas em 1991, pelo seu degradado estado.
No meio daquele mobiliário característico das recoletas da Costa Nova, salvaram-se umas camas e lavatórios de
ferro, bem bonitos. E da parede? – duas fotografias, uma de um elegante e
esbelto lugre, em dia de
bota-abaixo…Mesmo sem identificar o navio à primeira, mais valia, desmontar o
quadro, limpar a fotografia amarelecida pelo tempo, e guardá-la com carinho.
Dois lugres a decorarem a parede de
uma recoleta que pertencera ao Avô
Pisco, só poderia ter a ver com a vida marítima dele: – ou navio da empresa
Testa & Cunhas, ou navio que teria comandado. Conclui, mais tarde, que
comandara ambos os lugres, em anos já
referidos.
Vivo de referências da
vida do meu Avô. Na campanha de 1919, fora o segundo capitão do lugre-patacho Gazela Primeiro. Quando o Gazela,
tendo deixado a pesca, partiu para Filadélfia, alguém me ofereceu uma brochura
que guardo religiosamente. Nela está esta imagem dedicada a todos os ilhavenses
que comandaram o Gazela Primeiro,
enquanto lugre bacalhoeiro.
O Gazela Primeiro, rodeado dos seus
capitães ilhavenses
Em
1921, estava na altura de mudar de praça de armamento, tendo atracado na praça
de Aveiro.
Manuel
Simões da Barbeira começou por comandar o lugre
Silvina, de 1921 a 1927. Levou como
pilotos, com base nas fontes possíveis, Augusto dos Santos Labrincha (22), José
Ferreira Patacão (23), João Nunes de Oliveira e Sousa (25) e João
Francisco da Madalena (26 e 27).
O
lugre-motor Silvina, de madeira, foi construído para a Empresa de Navegação e
Exploração de Pesca, Lda., de Aveiro, em 1919 por Manuel Maria Bolais Mónica.
Em 1928, passou a ser propriedade de Testa & Cunhas Lda.
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Em 1927, abrandemos o ritmo dos navios e
das viagens e dediquemos algumas palavras à sua faceta empreendedora. Sempre
considerei o meu avô um dos sócios fundadores da empresa Testa & Cunhas,
Lda., constituída em 16 de Dezembro de 1927. E foi.
Assinaturas
da 1ª acta, após a constituição da empresa – última assinatura
Mas,
ainda não há muitos anos, é que me certifiquei, por escritura encontrada e
cópia adquirida no Arquivo Distrital de Aveiro, que ele, anteriormente, já
fazia parte da Empresa de Navegação e Exploração de Pesca, Lda., de Aveiro.
Tendo
tido conhecimento do teor do recorte do jornal O Ilhavense, de 4.12.1927, e tendo cruzado todos estes dados, não
foi difícil concluir esta sucessão de empresas.
Recorte do jornal O Ilhavense, de 4.12.1927
E, voltando aos navios, o Capitão Pisco comandou o lugre Cruz de Malta de 1928 a 1937, com uma interrupção em 1932, em que o
navio não foi ao bacalhau. Foram seus pilotos João Francisco da Madalena (28),
Manuel dos Santos Marnoto Praia (29 a 33), Mário Paulo do Bem (36 e 37).
Na campanha de 1938, fez a viagem inaugural do lugre de quatro mastros Novos Mares, aí se mantendo até 1942
(inclusive). Foram seus pilotos Francisco Fernandes Mano (38), Flávio Ramires
Campos Pereira (39, 40 e 41) e Júlio da Silva Paião (42).
Por
informação do Jornal de Notícias de
8.12.1938, tive conhecimento de que o Novos
Mares, no dia anterior, ao entrar a
nossa barra e ao passar a restinga, encalhou, pelo que os restantes cinco
navios, que aguardavam fora do porto, ficaram para o dia seguinte. Este
encalhe, felizmente sem consequências, foi originado pelo lamentável estado da
barra, agudizado pela não existência de motor, a bordo. Na campanha de 39,
embora um pouco mais tardiamente, o Novos
Mares já partiu, com o novo equipamento, indispensável.
A escala,
a bordo do Novos Mares, em 1938
Então,
depois de muitas procelas, maus bocados, aflições, preocupações, angústias,
saudades da família, próprias deste tipo de vida rude e dura, ficou em terra,
depois de cerca de quarenta anos de mar, apto a, em 1943, iniciar as suas
funções de Avô. Adorava-me, estragava-me
com mimos, levava-me com frequência à chegada das redes (artes), nas companhas da Costa Nova e,
amiúde, no quadro da bicicleta, à seca, na Gafanha da Nazaré. Bonacheirão,
bondoso, humano e afável, empreendedor e trabalhador, entregou-se, após as
fainas do mar, às visitas sistemáticas à firma de que fora um dos sócios
fundadores. As lides agrícolas ali, no quintal do Curtido de Baixo,
ocupavam-lhe o resto do tempo. Deixou marcas profundas na minha existência e, além
das colheres do Titanic, ainda hoje, guardo, com afecto, alguns dos
instrumentos náuticos de seu uso pessoal – em tempo incerto, não saio sem
consultar o barómetro que fora seu. Curiosa, a diversidade de navios em que
embarcou. Daí, não ter sido fácil, mas atractivo e apelativo, articular as
informações.
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Ílhavo,
4 de Dezembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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Por volta dos anos 60, mais ano menos ano, conheci o capitão Simões, na Costa Nova.
ResponderEliminarA partir dos meus 10 anos(1957 - ano em que fiz exame de admissão no Liceu de Aveiro), o capitão Manuel Ferreira da Silva, que era amigo de meus pais e avós,levava-me a passar umas férias (nas férias grandes) em casa dele na Cale da Vila na Gafanha da Nazaré. Passava o tempo entre os navios, a seca de Lavadores, na Barra e a Costa Nova.
À tarde levava-me a lanchar à Costa Nova onde se encontravam os capitães do tempo dele e trocavam histórias. Apresentou-me a todos eles entre os quais o seu avô cujo nome jamais esqueci por que um dia me disse: - Então o Sardo quer fazer de ti um capitão?