Capitão
Armindo Simões Ré. 1950
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Sempre
conheci as quatro filhas do Sr. Capitão Armindo Simões Ré, mas deram-me, por
conselho, que a mais amante das memórias materiais e imateriais do Pai, seria a
mais nova, a Arminda, e uma neta, a Fernanda, que reside em Ponta Delgada, na
ilha de S. Miguel, Açores.
Estabelecido
o contacto telefónico, passou-me a ser mais fácil ir a Ponta Delgada (via
virtual) do que, ali, à dita Avenida dos Capitães (onde sobram dois ou três), nº
83-85.
Para
além disso, também percebemos, ambas, que o afecto que ela tivera por seu Avô,
teria existido comigo, relativamente ao meu. Coisas da vida, no mundo dos
afectos…
E
tem vantagens, porque a Fernanda é de Física, trabalha no Instituto Português
do Mar e da Atmosfera e pode anunciar-me as «trabuzanas», que costumam
deslocar-se dos Açores para o Continente.
O
Sr. Capitão Armindo Simões Ré nasceu em Ílhavo em 20 de Agosto de 1907. Filho de Alexandre Simões Ré
(1880-1967), também oficial da Marinha Mercante, e de Maria Nunes Vidal, casou
com a Senhora D. Arlinda da Silva Ré, de quem teve as quatro filhas – a Maria
do Rosário, as gémeas Arlinda e Maria e a Arminda.
Possuía
a cédula marítima 18175 passada pela capitania do porto de Aveiro, em 20 de
Fevereiro de 1923. Já não teria
pertencido àquela geração em que iam prematuramente para o mar, mas a filha
mais velha contou-me que o pai se referia que, em tempo de crise, teria
embarcado como ajudante de cozinheiro, num navio em que o Pai andava. Tudo
muito vago, mas daí a justificação para ele ser uma pessoa muito hábil na
cozinha.
Teria
sido? Talvez… Nada de muito inédito.
Outra
referência – através de correspondência que me foi facultada – apercebi-me que
em 1928, andou embarcado no lugre Lídia, em serviço comercial, pertença do armador – José Joaquim Gouveia – Parceria Marítima Douro, Porto, entre
1918 e 1935.
Mais
uma referência, também vaga – uma fotografia de um navio do comércio, MIRANDELLA, anotada no verso –
recordação da entrada em Hamburgo, a 26 de Novembro de 1930.
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O velho lugre
de madeira Argus, em 1934
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Bem,
desde que tive acesso a fontes credíveis, o Sr. Armindo Ré fez as campanhas de 1933 a 38, no dito Argus
velho. Este Argus, lugre de madeira, construído na
Inglaterra em 1873 para a Parceria Geral de Pescarias, mais tarde, na firma
Veloso, Pinheiro & Ca. Lda., da praça do Porto, passou a ser o Ana Maria. Foi o seu piloto, sob o
comando de Francisco da Silva Paião (33,
34, 35 e 36) e Alexandre Simões Ré (37).
Passou ao seu comando em 1938,
levando como piloto, Alexandre Simões Ré. Inverteram-se os papéis.
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No velhinho lugre
de madeira Argus, em 1936
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E
passemos ao lugre com motor, de
ferro, Creoula, de 1937, o actual NTM, que todos bem conhecemos.
Nas
campanhas de 1939 e 40, sob o comando de João Pereira
Ramalheira (o Vitorino), Armindo Ré foi o imediato e Alexandre Ré, o piloto.
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No Creoula,
numa das viagens de 39 ou 40
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Na
imagem anterior, junto à roda do leme, Sílvio Ramalheira seguido de Adolfo
Paião; à esquerda, Armindo Ré.
Nas
campanhas de 1941 a 43, seguiu-se o Argus, o novo/velho Argus,
de ferro, construído na Holanda, em 1939, imortalizado pela obra tripla A Campanha do Argus de Alan Villiers. O
trio da oficialidade manteve-se. Em equipa ganhadora não se mexe – diz-se.
Mas
o lugre-patacho Gazela Primeiro meteu-se de permeio e Armindo Simões Ré tornou-se
capitão deste mítico navio.
Quem
não o sente? Está longe, mas foi nosso, e comandado por capitães todos
ilhavenses, ílhavos de rija têmpera,
que sempre sonharam com o mar longínquo.
Nas
safras de 1944 a 48, inclusive, exerceu, pois, o cargo de seu capitão, com o Pai,
Alexandre Simões Ré, como imediato.
O Gazela, em 1900, foi completamente
reconstruído em Setúbal, no Estaleiro J. M. Mendes, passando a chamar-se Gazela Primeiro. Passou a ser o maior
navio da Parceria Geral de Pescarias e, de todos os navios da empresa, o Gazela Primeiro talvez tenha sido o
mais famoso.
Em 1969
imobilizou na Azinheira e em 1971 o
navio foi vendido ao Philadelphia Museum e mais tarde entregue a um grupo de
amigos, que o vão preservando em perfeitas condições de navegabilidade.
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O lugre-patacho Gazela Primeiro
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Estamos
perante um caso de fidelidade a uma empresa, até à data (quase de filho e Pai),
quando, provavelmente, perante um convite da empresa Brites, Vaz & Irmãos,
Lda., da praça de Aveiro, o nosso capitão foi buscar o navio-motor, de ferro, Vaz,
à Holanda, onde fora construído, para o começar a comandar na campanha de 1949. E por quantos anos? 1950, 51 …etc., o que, inicialmente
pensara, dezasseis campanhas, com mais cinco, noutra ficha biográfica, durante 21 anos. Até 1969. Uma vida de apego e sempre de sobressalto, já que sobre as
salsas ondas, de quando em vez, alterosas.
Segundo
informação do Jornal de Pescador, de
Abril, p. 49 e Maio, p. 9, de 1949, tivemos conhecimento que o Vaz entrara no Tejo, a 19 de Março, onde
estivera, embandeirado em arco, pronto para receber individualidades e outras
visitas. O Sr. Capitão Armindo Ré, então com 41 anos, um dos mais hábeis e
conhecedores capitães da Marinha Mercante nacional, interpelado pela imprensa citada,
mostrava-se encantado com o navio, pela modernidade, conforto, velocidade,
capacidade e equipamentos. Foi o seu
navio. De imediato, nos anos de 1949,
50 e 51, foi Alexandre Simões
Ré, que terá terminado, e não era sem tempo, a sua carreira de mar.
Nas
restantes viagens, os imediatos ou pilotos, normalmente, não foram de Ílhavo.
O Sr.
Capitão Armindo, tendo tido, a bordo, uma infecção no polegar da mão esquerda,
originando um panarício, ia-o escaldando em água fervente, até que um dia, a
sangue-frio, como a infecção cavalgasse, ele próprio cortou a falangeta do dedo
para evitar o pior. Ao chegar ao Gil
Eannes, para um tratamento mais cuidado, informaram-no que, se assim não
tivesse agido, teria estado sujeito a ter de lhe ser cortada a mão. Meu Deus, até
arrepia a coragem e a ousadia com que assim agiu!...
Igualmente através
do Jornal de Pescador, de Agosto de 1970, p.9, confirmámos a existência de
uma condecoração, que tivemos o prazer de observar.
No Dia da
Marinha, a 8 de Julho de 1970, na
presença do Almirante Tenreiro, o Ministro da Marinha, Almirante Pereira
Crespo, condecorou os capitães-pescadores Armindo Simões Ré, Manuel Machado dos
Santos e José de Oliveira Rocha, todos de Ílhavo, com a medalha Vasco da Gama,
de criação recente, galardão exclusivamente do mar e cuja atribuição se ligava
a feitos ou serviços praticados.
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O navio-motor, de ferro, Vaz
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Foi no Vaz que levara a bordo da Gafanha para
Lisboa, a sua esposa e a filhota Arminda e, mais tarde, a neta adorada,
Fernanda. Em ambas, permanecem recordações inesquecíveis, que vim avivar com
estes Homens do Mar – rememoram a
novidade da viagem marítima, o gosto pela convivência a bordo com a tripulação,
os seus albaióis (hoje, jardineiras), que as fazia parecer uns pequenos
marinheiros a bordo, o conforto do salão
de oficiais com as suas caminhas improvisadas com cadeiras e cobertores, o
cheiro do pequeno-almoço, servido por moço
de casaco branco…
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O Vaz, Cap. Armindo Ré e a neta
Fernanda. 1964
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A
neta Fernanda reviveu ainda a situação do quarto do avô-pai – assim o tratava –. Recordou três enormes gavetões
encimados por uma cama (o seu camarote), seguido da casa de banho e do gabinete
médico; sempre em frente e do mesmo lado, a escada para a ponte (algures por ali estavam pendurados uns binóculos e um chapéu
de farda).
Recordou
ainda que, ao fundo do camarote e a meia parede havia um armário e, à direita e
em frente à mesa de refeições, estava uma maravilhosa secretária repleta de
objectos interessantes – réguas e esquadros, canetas e lápis, tabelas com
números, livros de registo, etc…, com um grande candeeiro e uma cadeira.
Lembra-se de ter ficado lá a escrever, a desenhar e a coscuvilhar (aliás, não
se recorda que alguma vez o avô a tivesse avisado ou impedido de ver ou mexer
nas suas coisas) … Nesse aspecto, teria sido mais como um irmão ou amigo com
quem a confiança era máxima.
Gostava
muito de ouvir o meu avô-pai –
relembra a Fernanda – a explicar coisas do navio, da pesca, do tempo… ele
gostava de ensinar e tinha uma paciência infinita… Assim recorda o Avô-Pai, a Fernanda, de além-mar, dos
Açores.
Depois
de ter deixado o mar, Armindo Ré ficou por terra, entre o carinho da família,
alguns bons anos, não sem deixar de ir diariamente à empresa que ultimamente
servira, após o que ia encontrar-se com alguns colegas, junto ao Bispo. Manteve
esta rotina até à doença não permitir.
Acamado
no último ano por problemas respiratórios, achava que seria levado por um
navio, para uma viagem bem longínqua, eterna. E assim foi em 19 de Setembro de
1994, com 87 anos.
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Imagens
– Arquivo pessoal
e gentil cedência de familiares
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Ílhavo,
13 de Novembro de 2016
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Ana Maria Lopes
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