domingo, 27 de novembro de 2016

Homens do Mar - João Ventura da Cruz - 24


João Ventura da Cruz, no ponto nevrálgico do navio
Tem-me sido extremamente difícil conseguir algumas fotografias de João Ventura da Cruz, bem como os dados básicos da sua biografia marítima, pois a sua ficha do grémio apenas refere que comandou o lugre com motor  Santa Izabel, construído em 1929 por Manuel Maria Bolais Mónica para a Empresa de Pesca de Aveiro, nos anos  de 1938, 39, 40 e 42. Ora sabemos que os seus feitos foram muito mais.
Tentemos explicitar.
O Sr. João Ventura da Cruz, natural de Ílhavo, nasceu em 1880. Casado com Ascensão Ricoca, foram pais de uma abundante prole, que ainda conheci, uns, bem melhor que outros – Maria, Aníbal, Ascensão, João Cândido, Manuel e Nídia Ventura da Cruz. Este ano, no Verão, mais uma foto surgiu, na casa da Costa Nova, com a sua prole. E curiosa, pois representa o capitão, de boné (5º), e, da esquerda para a direita, sua esposa Ascensão (3ª), e seus filhos, Aníbal (1º), Ascensão (2ª), Manuel (4º), João Cândido (6º) e Maria (7ª). Falta a Nídia, a mais nova.
Que sorte! Estava datada – 1935 – e identificado o navio – lugre com motor Santa Mafalda. Tudo conferia.
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A bordo do lugre Santa Mafalda, com a sua prole, em Lisboa.1935
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Perante os primeiros dados credíveis, lancei o isco e pesquei que fora capitão, nos anos de 1922 e 24, no lugre Argonauta II, de 1925 e 26, no lugre Alcion, e de 1928 e 29, no lugre Celestina Duarte, todos da praça de Aveiro, pilotado, respectivamente, por João dos Santos Marnoto (26 e 28) e Manuel Pereira da Bela (29).
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O lugre Argonauta II, de três mastros, proa de beque e popa redonda, foi construído por Manuel de Matos Mónica, na Gafanha da Nazaré, em 1919, para a Sociedade Argonauta, Lda., de Aveiro. O navio foi vendido em 1927 à Empresa de Navegação Portugal e Américas, do Porto, alterando o nome para Celestina Duarte, porém, conservando a matrícula em Aveiro. Naufragou nos rochedos exteriores do porto de Leixões, em Fevereiro de 1933, em que faleceu o capitão ilhavense Paulo Nunes Bagão, já septuagenário. Do lugre Alcion, soube que teve a sua origem no lugre-escuna Figueira, construído em Inglaterra em 1904, tendo sido o ex-Becca and Mary, até 1913, então registado, na Figueira da Foz. Posteriormente, foi vendido ao capitão de Ílhavo, António José dos Santos, de alcunha Rocheiro, tendo sido registado em Aveiro, passando a ser o Alcion, em 1920.
Na campanha de 1930, comandou o lugre Bretanha, pilotado por Manuel Pereira da Bela, nosso patrício.
Anos de forte crise económica. Lugres amarrados. E os armadores, se não viessem a ter melhores resultados, prometiam deixar os lugres ancorados a apodrecer.
Entretanto, conta-se que, tendo encontrado, casualmente, o rude e destemido Capitão João Pereira Cajeira, o Sr. Egas Salgueiro, armador empreendedor, lhe fez saber que os navios de pesca dinamarqueses e faroés, nos bancos da Groenlândia, faziam muito boas pescas. E logo o contratou, para chefiar o lugre Santa Mafalda, com a condição de ir pescar, sigilosamente, nesse ano, à Groenlândia. Entregue aos seus parcos conhecimentos, o Cajeira, com a preocupação de cumprir o que havia prometido, lá foi meter-se nos terríveis gelos e medonhos campos de gelo, onde se viu perdido e amedrontado pela situação.
Não chegou propriamente a pescar – muitos receios, temores e perigos, dissuadiram-no, naquele ano, mas não perdeu a ideia de lá voltar. De regresso, o capitão Cajeira dá uma longa entrevista ao jornal Beira-Mar, de 30/11/1930. Frio inclemente, cortante, bizarros e gigantescos icebergs, lindíssimas auroras boreais, riscos de se perderem, fizeram-no regressar.
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Gigantesco e medonho iceberg…
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Um pescador disse referindo-se aos mares da Groenlândia: – Eh! Sinhor Capitão! Aquele mar não tem passage! Aquilo era tudo fechado que até metia medo…
O capitão Cajeira sorridente e pensativo parecia recordar a acidentada viagem que, pelos perigos de que foi cercada, nos faz lembrar as antigas viagens dos navegadores de antanho.
Naqueles anos trinta de profunda depressão e crise económica, tudo corria mal e a situação da Empresa de Pesca de Aveiro tornara-se insustentável e os três principais sócios da EPA reuniram-se com os três capitães Manuel dos Santos Labrincha (1880-1954) do lugre com motor Santa Izabel, João Pereira Cajeira (1879-1958) do Santa Mafalda e João Ventura da Cruz (1880-1970) do Santa Joana a quem contaram a verdade nua e crua – estes comprometeram-se a ir pescar à Groenlândia, de modo a que fosse conseguido o dinheiro suficiente para pôr os navios no mar.
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E cá está o nosso capitão João Ventura da Cruz envolvido, com sua palavra e temeridade, na questão.

Sigilosamente, assim foram, pois o segredo é a alma do negócio – era o lema do Sr. Egas.
A eles se juntou o Capitão Aquiles Bilelo, de que já falámos, por convite do amigo Cajeira, a quem prometeu reboque, já que o seu navio, o Santa Luzia, tinha menos capacidades que os outros. Há alguns, poucos, relatos deste heróico feito, embora com ligeiras discrepâncias.
Com a falta de comunicações habituais para a época, mais cedo do que habitual, na Costa Nova, vislumbra-se: Navio à vista!... Navio à vista!...
É este…
É aquele…
Quando, mais cedo que o habitual, os quatro lugres, que pescaram nos bancos da Gronelândia, chegaram a Portugal e demandaram os seus portos de armamento, houve grande alvoroço e muito regozijo entre as classes ligadas às actividades piscatórias. É que, de todos os veleiros que, nesse ano de 1931, foram à pesca do bacalhau, apenas aqueles quatro conseguiram carregamentos completos.
É bom pois, que sejam sempre lembrados aqueles quatro arrojados Capitães de Ílhavo, seus pilotos – Joaquim Fernandes Agualuza (1901-1983), piloto do lugre Santa Izabel, João Fernandes Matias Júnior, Britaldo (1901-1959), do Santa Mafalda, João dos Santos Labrincha (Laruncho) (1901-1980), do Santa Joana, José Vaz Mano (1904-1980), do Santa Luzia – e suas destemidas tripulações.
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Mas as fainas marítimas de João da Cruz não ficaram por aqui. Creio que no ano de 1932, continuou a comandar o lugre Santa Joana, pilotado por João dos Santos Labrincha (Laruncho). Nos anos seguintes de 33 a 35, passou a comandar o lugre Santa Mafalda da mesma empresa, pilotado por Manuel Fernandes Matias em 1933.
Neste mesmo ano, segundo informação do jornal local, o Santa Mafalda entrou em fins de Setembro, na barra de Leixões. Trazia um carregamento completo de bacalhau, mas a viagem é que fora muito acidentada, sofrendo a perda de dois tripulantes – um na Gronelândia, a 17 de Julho, de Ílhavo, em virtude de se lhe ter virado o dóri em que pescava e outro, a 11 da de Setembro, quando, em viagem, o lugre foi apanhado por um temporal que lhe varreu o convés, um pescador da Fuzeta. Vidas sofridas e tempos muito duros, que impunham respeito a qualquer um.
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O lugre Santa Mafalda
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Entretanto, na safra de 1936, com duas viagens, João Ventura da Cruz estreou no comando o primeiro arrastão lateral português mandado construir pela EPA, na Dinamarca, em 1935, adaptado às necessidades dos mares frios do bacalhau, a que deu o nome de Santa Joana. Levava a bordo, além dos 60 tripulantes, mais alguns pescadores franceses e um maquinista alemão (Fritz Bruck), como monitores. Foi seu imediato Manuel Pereira da Bela e piloto Manuel José Fernandes, da Gafanha da Nazaré. No ano de 37 (com uma viagem), o imediato continuou o mesmo, o piloto foi João Pereira Gateira e o praticante de piloto Benjamim dos Santos (Pardal).
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O arrastão de pesca lateral Santa Joana
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De novo, passou para a pesca à linha, comandando o lugre Santa Izabel, da EPA, de 1938 até 42 (inclusive). Em plena campanha de 41, o navio foi vendido à Empresa Bacalhau de Portugal, Lda., com sede em Lisboa. Foram seus pilotos os ilhavenses Manuel Gonçalves Viana (38), Manuel Pereira Bela (39), João Nunes de Oliveira (40) e José Simões Bixirão (Ponche) (41 e 42). Imediato, José Simões Bixirão (Ponche), na campanha de 40.
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O lugre Santa Izabel

O nosso capitão, a partir de 1942, não aparece nas listas de tripulação, tendo-se, certamente, aposentado.
E nascido em 1880, deixou-nos o decano, à época, dos oficiais da marinha mercante, em 1970, com noventa anos de idade.
Que elogios tecer a um homem do mar como este?
Experimentado, arrojado e prático, chefe de família exemplar era venerado e respeitado por todos que com ele trataram.
Capitão experiente de diversos lugres bacalhoeiros (dos quatro primeiros a pescar na Groenlândia) e oficial debutante do primeiro arrastão de pesca lateral, em 1936, fica para a história dos nossos heróis, bravos e destemidos marinheiros, em mares longínquos com que sempre sonharam. Mares planos e estanhados, mares revoltos e mares gelados, convés varrido por gigantescas ondas, era este o cenário com que se habituaram a conviver.
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Imagens – Arquivo pessoal e gentil cedência da neta Teresa Cachim
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Ílhavo, 30 de Outubro de 2016
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Ana Maria Lopes

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