domingo, 14 de dezembro de 2014

Memórias «líquidas» de Ílhavo - II

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(Cont).
Retrocedamos um pouco no tempo.
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Ana Maria – Hoje, creio que é de tanta chuva, deu-me para os rios ou riachos, lavadeiras com tripeças. E identificar esta imagem, do tal arquivo de Ílhavo?
Atenção ao vestuário. O lenço na cabeça, com chapéu negro de aba estreita, mas voltada, diz-vos alguma coisa?
Etelvina Almeida – Gosto desta imagem. Contém muita informação.
Ana Maria – Isso é verdade...mas local? Época, aposto nos primeiros decénios do século XX, pelo traje. A roupa a corar, nos arbustos...
Ábio De Lápara – Esta sim! Não reconheço o chapéu. Os de que me lembro não tinham abas. Mas o "rio" tem exactamente a configuração geomorfológica e paisagística do Rio dos Pintos! Corre a meia encosta, contido pelo caminho de acesso. Para a direita o declive para as vessadas que percorriam o vale que desembocava na ponte de pedra da Malhada. As canas, as silvas, a sebe de louros, os velhos choupos ao longe... o tapume de madeira que vedava os acessos privados à levada... tudo aqui me cheira à minha infância. Por incrível que nos pareça hoje, este local situava-se na rua que, a partir da Avenida, hoje leva à Biblioteca Municipal. Lavava-se aqui toda a roupa da rua de Alqueidão. O alguidar de zinco e o cesto de verga mantiveram-se no mercado e a desempenhar as mesmas funções até aos anos 70.
Teresa Cruz Santos – Lembro-me bem das tripeças e da roupa a corar na vegetação envolvente, mas não na zona de Ílhavo. E desses chapéus não me lembro. Pela altura das saias, deve rondar os anos trinta, quarenta... Achei curioso não estarem todas vestidas de preto...
Ana Maria – Pelos vistos, gostaste, Ábio. Nota-se. Sei quais os chapéus a que te referes, em forma de queijo e com uma peninha. Mas, também havia estes. E outros mais rasinhos, onde as peixeiras colocavam as macolas. Grandes memórias, hein?
Ábio de Lápara – Este ribeiro corria a meia encosta, paralelo à rua José Estevão e à rua de Alqueidão. Nele terminavam todos os quintais das casas do lado sul dessas ruas. Sobre ele estão hoje os prédios da Avenida 25 de Abril, desde a Fontoura até ao CASCI, que foram exactamente construídos ao fundo daqueles quintais.
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O mar cansado, retirou-se. No final
Deixou ribeiros, ervas, ambiguidades...
Na ausência perene do seu sal,
Outras vidas nasceram nas vessadas.
Por entre finos mapas de canais
Construíram a cidade que eu amava.
As águas de cristal foram tapadas,
E não lavaram jamais,
Tudo o que a água lavava!
Do meu rio vão agora aquelas águas
Por onde o dia perdeu a claridade
E descem cantando as mágoas...
Nos subterrâneos vasos da cidade.
Céleres, correm p'rá Ria onde o sal
Lhes anula o doce e veste o ser.
Lamentam-se então, como um mortal,
Da dificuldade que tem... sobreviver.
Agora, que os becos estão à venda
E os velhos já se foram dos carris
Restam-me lembranças das contendas.
De um tempo amargo, mas feliz...
E os silêncios não me enganam
Nem nos becos, a tarde calma,
Porque esses silêncios profanam
O alegre chilreio da minha alma...
Tudo parece pacífico… talvez até mesmo doce:
Iluminaram a Praça e floriu o Jardim...
À primeira vista... Pois isso é, como se fosse
Um sobressalto negro dentro de mim.

Maria Dolores – Aqui será a azenha aonde vivia o senhor Alpoim?
Paulo Silva Flautas – O ribeiro é sempre o mesmo! Aqui creio ser onde está agora o Pingo Doce!
João José – Penso bem que era o do Casal que falei e mais ou menos onde hoje está o lago com os patos e onde a criada da minha casa lavava a roupa com a tripeça.
A azenha era na esquina da rua do Casal encostada à casa que mais tarde foi do Cap. José Rocha.
Carlos Maia – Este ribeiro e na Légua em frente ao pinhal seco.
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Há opiniões que divergem, é natural:
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Ana Maria – Cada um fica no que lhe parece. Obrigada pelo esforço, pelas hipóteses, pelas memórias. Essas foram mesmo relatadas de uma forma interessante, bem como as vivências de época, em formato «saudosista» – as lavadeiras, os seus trajares, os riachos, as ribeiras, as bacias, as canastras e as tripeças, essas, peças fundamentais. À custa destas duas longínquas imagens, «navegámos» no tempo, prazerosamente.
Paulo Morgado – Claro que identificar correctamente o local é muito difícil. No entanto será num dos locais existentes ao longo do ribeiro que vinha (vem) da Presa/Légua e que passava pelo Casal a que seguia ao longo do Jardim e ia (vai) desaguar na Malhada (passa pela ponte de grés, dita romana). Conheci locais destes, junto ao Pinhal seco, num sítio que conhecíamos por Brejo, onde hoje está o acesso do Casal para o Continente, outro junto à escola primária de Cimo de Vila, e outro ainda no "Ti Alpoim", onde está a urbanização da Plenicoop. Bem, e mais terão existido anteriormente. Alguns eram mesmo particulares aproveitando a água da levada que alimentava as diversas azenhas que existiam.
Maria Dolores – Também conheci o rio na Avenida aonde havia a lixeira. Ai ainda era pequena. A minha mãe lavava a roupa.
Júlia Sardo – As lavadeiras incansáveis.
Senos Fonseca – Este, creio ser do fio de água que corria abaixo de Alqueidão.
Maria do Rosário Celestino – Como adoro saber tudo isto.
Vieira da Silva – Ainda me lembro de ver uma parte deste riacho de que nos fala o nosso Amigo Ábio De Lápara ao fundo do quintal da casa do meu Tio João Portugal e da minha Tia Júlia Nunes (Pais dos meus Primos António Alcides e José Paulo que foram ainda muito novos para os USA e que o Ábio De Lápara provavelmente conheceu). A casa tinha a frente virada para a Rua José Estêvão, quase em frente da casa do Sr. Madail (que hoje pertence ao Casci) e o quintal terminava num riacho.
Não percebo nada de Arquitectura, mas penso muitas vezes como seria hoje a cidade de Ílhavo se, em vez de "encobrirem" todos os fios de água os tivessem transformado em canais, não necessariamente navegáveis, que (não sei se estou a dizer disparates...) provavelmente ligariam esta zona da actual Avenida 25 de Abril às águas do esteiro da Malhada tornando-se um dos motivos de atracção turística.
Ana Maria – Entrou tarde, mas ainda veio a tempo, para participar. Obrigada, por isso. Mais um testemunho e uma hipótese...
Ábio de Lápara – Conheci muito bem essa casa e era muito amigo deles. As nossas mães eram amigas, e andamos todos na creche da Sra. Henriqueta, que depois foi da Sra. Modesta. A Henriqueta era da família deles e tinha um filho, o António, bem mais velho do que nós, mas que adorávamos pelo que nos apoiava nas brincadeiras. A partida deles para a América causou-me grande dor e nunca a entendi. Não tinham dificuldades económicas, estudavam, e com 15 anos deixaram a mãe e os amigos sem razão aparente, para irem à aventura americana. O António Alcides foi incorporado no exército e veio parar a Berlim da Guerra Fria. Teve sorte. Passado pouco tempo podia ter sido a da Coreia. Correspondemo-nos durante alguns anos, até que a vida nos afastou.
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Mostraram-se retratos, evocaram-se amizades ausentes.
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Ana Maria – Como um simples riacho arrasta tantas recordações, tantas memórias!... «Muita água passou ou passa por baixo das pontes!» - diz-se, não é?
Ábio de Lápara – As palavras e as recordações são como as cerejas...
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Brinquei com palavras? Brinquei. Alinhei frases? Alinhei. Obrigada, Ilhavenses e amigos à conversa, que me forneceram matéria-prima para um texto narrativo, com excertos informativos e poéticos, que compus. I like. Gooooooooooosto muito.
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Imagens – Clichés de João Teles
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Ílhavo, 14 de Dezembro de 2014
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Ana Maria Lopes
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