quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Uma janela para o sal - XX

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O alagamento dos céus...
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Da preparação à produção, da remoção à conservação do sal, a marinha transfigura-se.
O Homem, esse molda-se à lama e transforma-a em cama para que a ria se deite.
Prazerosamente vê-a fecunda, depois de a tratar.
Vem o sol e o vento... e nasce o rebento.
Eis chegado o momento de tão belo colher o que plantado foi, pela mão da Providência e do homem de bom saber.
O marnoto verga-se ao tempo, tem dias de tormento, outros de alento. Cura-o o sal, curte-o o sol.
A ria cede e o céu abençoa-o.
 
Depois da safra, vai-se o sal.
Despe-se a deusa e retira-se-lhe o fruto.
Ali fica ela, ao vento e à sorte.
Em breve, o homem a deixará repousar banhando-a com as águas da ria mãe.
Alagar-se-ão as camas e os céus.
Finalmente... o descanso! 

 
Lá do céu, avistam-se os montes de sal harmoniosamente dispersos pelas eiras.
Foram mãos sabedoras que por ali deixaram cair os brancos cristais, em montinhos, como quem semeia o pão nosso no dia-a-dia.
Abençoadas pedrinhas que tão bom sustento dão!

À vista, são recortes de ria enclausurada em camas de areia e lama batida.
No labor da marinha, são janelos de vida que se enchem de sal ao longo dos dias.
O seu brilho, ao sol do meio-dia, ofusca. Toda ela se cobre de um esbranquiçado manto de luz e de sal.
O céu, em plenitude, nela se reflecte, inundando-a com os seus tons estivais.
É encanto para a vista e alimento para alma desta gente ribeirinha.

Na marinha Pioneira, em 1964

Ali, na eira, em cima do monte de sal, marnoto e moço agasalham e afagam o produto da safra, com fervor que o suor já se esfumou…
É com braçadas de bajunça, criada pela ria, que se cobre o monte.
Entrelaçadas e acamadas são chapeadas com lama, em forma de pé de galinha, como reforço.
Urde-se a capa de Inverno, que os tempos serão agrestes.
O sal ali aguardará, protegido, até que o leve o barqueiro no seu saleiro.
Esse sal novo, velho ficará e noutra safra se recolherá.

 
Geometria mais bela, esta, a da nossa ria!
Horizonte alienado deste pedaço de céu ali espelhado.
Se pudesse mergulhar no céu que ali mora, revoava as águas sem demora, que beleza desta tão efémera só a Providência poderá recriar.
 


A safra chegou ao fim!
Alagam-se os céus pelo leito enlameado da marinha, é a retoma da Ria.
Camas desfeitas, janelas fechadas. A casa repousa.
Só o céu ali fica, em retalhos, vidrado.

Quer faça chuva, quer faça sol quer sopre vento, aprisionado fica, este céu alagado, na beleza da laguna...

Até à nova safra... só Deus, o céu e a Ria!

Nota final para Uma janela para o sal

Pelas janelas, janelos e postigos, toda a marinha se mostra rainha.
Abram-se os céus e mostre-se a lida, ali, em baixo, onde o homem se une com a ria.
 
Do homem sabedor da ria e do sal, rebentam as gretas que sangram, por toda a safra dorida, mas ansiada, pois o pão é alimento para a boca e o trabalho é cura para a alma.
 
Foi o Marintimidades, companheiro de uma safra.
De outros tempos, é certo, mas levou a recordação a quem dela se apraz.
Outros levarão o que dela quiserem... curiosidade, algum saber, quiçá, magia.
Mas algo ficará na retina e na alma, imagens com sentimento, banhadas por palavras de quem sente a Ria com alegria e alguma nostalgia.
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Agradecemos a companhia... quiçá a safra continue...
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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17| 06 | 2014
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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2 comentários:

  1. Alagaram-se as marinhas, o céu inundou os fundos e a janela abriu-se mostrando-nos um cenário mágico e nostálgico.

    Eis chegada ao fim a safra do sal, e a nossa também!

    Obrigada Ana Maria, pela partilha desta "safra"...

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  2. Mudam-se os Tempos, Mudam-se as VontadesMudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
    Muda-se o ser, muda-se a confiança:
    Todo o mundo é composto de mudança,
    Tomando sempre novas qualidades.

    Continuamente vemos novidades,
    Diferentes em tudo da esperança:
    Do mal ficam as mágoas na lembrança,
    E do bem (se algum houve) as saudades.

    O tempo cobre o chão de verde manto,
    Que já coberto foi de neve fria,
    E em mim converte em choro o doce canto.

    E afora este mudar-se cada dia,
    Outra mudança faz de mor espanto,
    Que não se muda já como soía.

    Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"

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