O alagamento dos céus...
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Da preparação à produção, da remoção à conservação
do sal, a marinha transfigura-se.
O Homem, esse molda-se à lama e transforma-a em
cama para que a ria se deite.
Prazerosamente vê-a fecunda, depois de a tratar.
Vem o sol e o vento... e nasce o rebento.
Eis chegado o momento de tão belo colher o que
plantado foi, pela mão da Providência e do homem de bom saber.
O marnoto verga-se ao tempo, tem dias de tormento,
outros de alento. Cura-o o sal, curte-o o sol.
A ria cede e o céu abençoa-o.
Depois da safra, vai-se o sal.
Despe-se a deusa e retira-se-lhe o fruto.
Ali fica ela, ao vento e à sorte.
Em breve, o homem a deixará repousar banhando-a com
as águas da ria mãe.
Alagar-se-ão as camas e os céus.
Finalmente... o descanso!
Lá do
céu, avistam-se os montes de sal harmoniosamente dispersos pelas eiras.
Foram
mãos sabedoras que por ali deixaram cair os brancos cristais, em montinhos,
como quem semeia o pão nosso no dia-a-dia.
Abençoadas
pedrinhas que tão bom sustento dão!
À vista, são recortes de ria enclausurada em camas de areia e lama batida.
No labor
da marinha, são janelos de vida que
se enchem de sal ao longo dos dias.
O seu
brilho, ao sol do meio-dia, ofusca. Toda ela se cobre de um esbranquiçado manto
de luz e de sal.
O céu, em
plenitude, nela se reflecte, inundando-a com os seus tons estivais.
É encanto para a vista e alimento para alma desta
gente ribeirinha.
Na marinha Pioneira,
em 1964
Ali, na eira,
em cima do monte de sal, marnoto e moço agasalham e afagam o produto da
safra, com fervor que o suor já se esfumou…
É com braçadas de bajunça, criada pela ria, que se
cobre o monte.
Entrelaçadas e acamadas são chapeadas com lama, em
forma de pé de galinha, como reforço.
Urde-se a capa de Inverno, que os tempos serão
agrestes.
O sal ali aguardará, protegido, até que o leve o barqueiro no seu saleiro.
Esse sal novo, velho ficará e noutra safra se recolherá.
Geometria mais bela, esta, a da nossa ria!
Horizonte alienado deste pedaço de céu ali espelhado.
Horizonte alienado deste pedaço de céu ali espelhado.
Se pudesse mergulhar no céu que ali mora, revoava
as águas sem demora, que beleza desta tão efémera só a Providência poderá recriar.
A safra chegou ao fim!
Alagam-se os céus pelo leito enlameado da marinha, é a
retoma da Ria.
Camas desfeitas, janelas fechadas. A casa repousa.
Só o céu ali fica, em retalhos, vidrado.
Quer faça chuva, quer faça sol quer sopre vento, aprisionado fica, este céu alagado, na beleza da laguna...
Até à nova safra... só Deus, o céu e a Ria!
Nota
final para Uma janela para o sal
Pelas janelas, janelos e postigos, toda a marinha
se mostra rainha.
Abram-se os céus e mostre-se a lida, ali, em baixo,
onde o homem se une com a ria.
Do homem sabedor da ria e do sal, rebentam as
gretas que sangram, por toda a safra dorida, mas ansiada, pois o pão é alimento
para a boca e o trabalho é cura para a alma.
Foi o Marintimidades, companheiro de uma
safra.
De outros tempos, é certo, mas levou a recordação a quem
dela se apraz.
Outros levarão o que dela quiserem... curiosidade, algum
saber, quiçá, magia.
Mas algo ficará na retina e na alma, imagens com
sentimento, banhadas por palavras de quem sente a Ria com alegria e alguma
nostalgia.
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Agradecemos a companhia... quiçá a safra continue...
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Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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17| 06 | 2014
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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Alagaram-se as marinhas, o céu inundou os fundos e a janela abriu-se mostrando-nos um cenário mágico e nostálgico.
ResponderEliminarEis chegada ao fim a safra do sal, e a nossa também!
Obrigada Ana Maria, pela partilha desta "safra"...
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as VontadesMudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
ResponderEliminarMuda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"