sexta-feira, 14 de março de 2014

Uma janela para o sal - XI

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A beleza do rer…
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Depois do sal envieirado, faz-se a redura pelo fresco da manhã, que a rapação é dura – pede, não só, força e destreza, como também saber e certeza. E é por lá, por essas praias salgadas que se amaneiram salineiros e moços, estes... contratados ou trazidos para a escola da vida pelo pai, seu mestre, ambos aptos para o trabalho da salinagem. É de contemplar a beleza de tal feitura!
 
 
 
Descalço, pelo tabuleiro da marinha nova da «Branca Caravela», o moço caminha lesto... De chapéu na cabeça, carrega a rasoila ao ombro, em equilíbrio, com a certeza do dever cumprido. Este moço, homem de corpo feito, observa os montículos de pedrinhas salgadas alinhados ao longo da rude vereda.
Foi rapadura da uma manhã – pensa. Muito em breve estes se juntarão à montanha mãe.

 
Fugindo à canícula da tarde, marnoto e moços abrem o mandamento e os meios para renovação de águas e iniciam a redura diária, em mãos alternadas. A salina é dividida e amanhada por terços – não vá faltar sal para rer!
Estes corpos, ainda tenros, sofrem as amarguras do sal e escorrem a pura seiva da infância, tingindo os brancos cristais.
São chagas que queimam! «Mas o que arde cura» – diz o povo e com razão!
Em ritmo cadenciado, um aqui, outro além, puxam e repuxam os encharcados cristais pelos duros vieiros, deixando para trás uma camisa alva e protectora.
 
 
O contraste entre o azul do céu e o branco do sal, reflectido no geométrico reticulado da água moira, transpõe a razão e liberta a emoção, salgando o olhar mais sensível.
Emarachem, moços! Enfeitem a marinha de alvos cones de sal, quais seios de mãe reprodutora!
Em plano inclinado, com energia e em sintonia, os hábeis moços puxam o sal para o tabuleiro, transpondo a engiva – a tão desejada fronteira.
Encimado o sal, é deixá-lo escorrer as moiras, que devolvidas à água-mãe, de novo produzirão ao sabor do sol e do vento.
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É este o cristal puro e alvo, que foi rapado aos fundos de lama e areia da laguna, pelas mãos cruas de uma criança, ainda inocente de corpo, mas madura na arte.
São rastos deixados por uma geração que se criou no sal, ao sal... seguindo no encalço dos seus, mestres no saber e no fazer.
Pegadas no tempo, de um sal lagunar que conta Estórias de Gentes, numa História de um Povo.
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Nota – Para esclarecimento de linguagem técnica, consultar GLOSSÁRIO de Diamantino Dias. 
Imagens | Paulo Godinho | Anos 80
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29 | 10 | 2013
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Texto | Etelvina Almeida |Ana Maria Lopes
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