sábado, 31 de agosto de 2013

Ida às Berlengas no Santa Maria Manuela - IV

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Quando acordei já todos tinham almoçado. A pescaria já ia longa e produtiva. A certa altura, alguém anuncia que viu um tubarão! Todos se aproximam para ver de que se tratava e, de facto, era sem dúvida um animal com cerca de um metro de comprimento, que nadava no seu vagar. Começou a comer tudo o que lhe aparecia pela frente e o pessoal queixava-se que o animal não deixava ninguém pescar. Passados uns minutos, apareceu outro idêntico. A tripulação chamava-lhes "canejas". São ligeiramente maiores que os cações e a sua aparição é frequente por estas paragens, normalmente longe da costa.
– Quem se atreve a ir agora para a água? – Alguém perguntou.
A mim, os animais pareciam ser inofensivos e até me apetecia ir tomar banho, mas o desconhecido falou mais alto, porque podiam aparecer mais e a situação descontrolar-se-ia. E, na altura, não se conseguia perceber se estas não seriam os tubarões-bebé brincalhões e se não estariam o pai, a mãe, os tios ou os primos a tomar conta, mais abaixo.
Mais tarde, confirmei que a espécie é, de facto, inofensiva e que não há registo de algum animal destes alguma vez ter atacado uma pessoa na água. Os animais querem mais é que os deixem em paz.
Mas a tripulação não lhes estava a achar graça. Já tinham partido algumas linhas e comido iscos, chumbos e tudo o que lhes aparecesse no caminho. Então decidiram tentar pescar um. Arranjaram um cordel mais grosso que as linhas de pesca normais e também um anzol mais forte, a que prenderam uma cabeça cortada de uma das muitas cavalas que tinham sido pescadas.
À primeira tentativa falharam – o peixe comeu o isco mas não ficou preso. A segunda tentativa foi ensaiada pelo mestre, que supostamente tinha mais experiência. E, comprovou-se, porque foram bem-sucedidos, com um pequeno contratempo – o animal foi içado para bordo e esperneava, barbataneava, rabeava e dava cabeçadas por todo o lado. Filmei tudo e já revi. O mestre, entendido no assunto, tentou pegar-lhe pela cauda, mas o animal foi mais esperto – num golpe de rins muito contorcionista, conseguiu morder-lhe o braço de tal forma, que ainda hoje lá deve ter os dentes marcados, apesar de serem relativamente pequenos. Mas antes de ir à enfermaria, o mestre ainda teve tempo e força para o apanhar definitivamente e dar o golpe fatal.
A pesca desportiva a que a maioria dos instruendos e da tripulação se tinha dedicado resultou em quatro caixas de peixe fresco. Para além da caneja que, já arranjada e pronta para consumo por especialista, ocupava exclusivamente uma das caixas, havia (salvo erro) por ordem decrescente de quantidade, cavalas, salmonetes, fanecas, besugos, sargos e ruivos.
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A tripulação encarregou-se de distribuir irmãmente o peixe pelos instruendos que quiseram levar alguns exemplares para cozinhar em casa. A maioria dos colegas não quis levar nada, pelo que ainda sobrou bastante. Bom destino teve, certamente.
Por volta das 5 da tarde, o navio levantou o ferro e fez-se à barra de Aveiro. Parecendo que não, ainda teríamos que percorrer cerca de 14 milhas, o que, à velocidade de 7 ou 8 nós dá cerca de 2 horas.
Estava calor e soprava uma leve brisa. À medida que o sol baixava, ficava mais frio, mas a vista ficava mais regalada, com aquela cor alaranjada a ser reflectida pelos objectos mais claros.
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O navio entrou a barra devagarinho, sem a confusão que tinha havido no dia anterior de manhã, com os pescadores desportivos e seus barquinhos. A maré estava baixa. À medida que nos aproximávamos do cais do navio, onde já esperavam familiares e amigos, começámos a perguntar-nos como iria atracar. Para surpresa nossa, ainda conseguiu arranjar espaço para dar a volta, atracando por bombordo, para ficar pronto a sair novamente.
A manobra de atracação não é fácil, sobretudo tendo em conta que a maré estava vazia e que havia alguma corrente e vento a dificultarem as operações.
No entanto, tudo correu sem percalços. Tive oportunidade de verificar, com agrado, como funciona a hierarquia a bordo, sobretudo em situações mais delicadas, como esta atracação. Só se ouvia uma voz – a do Comandante. Por acaso, a tripulação não pareceu estar muito treinada nestas manobras. A hierarquia intermédia parecia estar um pouco desorientada e os marinheiros ficavam a aguardar ordens que demoraram a chegar.
O Argus assistia impávido e sereno a todo o processo. Certamente pensaria que algum dia pode voltar a ser a sua vez de lavar a cara e ser o suporte para uma tal experiência, ou outras viagens mais importantes.
Toda a manobra demorou mais de meia hora. Nós já estávamos com alguma vontade de sair, porque o dia seguinte era de trabalho normal. Fomos buscar o peixe a que tivemos direito e, depois de instalada a escada de portaló, lá abandonámos o navio com aquela lágrima de saudade no canto do olho, mas cheios de tanta emoção e aventura.
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Foi com grande prazer que «abri» o Marintimidades à colaboração do meu filho Paulo Miguel Godinho, dono de uma grande sensibilidade perante as «coisas do mar e da ria».
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Costa Nova, 31 de Agosto de 2013
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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Ida às Berlengas no Santa Maria Manuela - III

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O dia seguinte acordou nublado e muito calmo. Não se via o sol nem o vento. Por certo a viagem nocturna terá sido mais lenta. Ainda navegávamos, mas já estávamos perto do destino pretendido, que era o pontal da Galega, pesqueiro que fica a cerca de 14 milhas da barra de Aveiro, para noroeste.
O navio tinha canas de pesca que já tinham sido preparadas para todos se poderem divertir um pouco durante este dia.
Mas os meus planos não passavam pela pesca. Pensava mais em começar por tomar um banho revigorante e nadar em mar aberto – mais uma coisa inédita na minha "lista de coisas a fazer, se possível".
Entretanto, o pouco vento que havia de manhã tinha desaparecido por completo. Achei muita piada à descrição que aparece numa tradução da escala de Beaufort a que tive acesso – "mar de azeite". Não me lembraria de melhor expressão. Era mesmo, tal e qual.
 
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Não sei se seria do frio ou da vontade de pescar, mas ainda não tinha aparecido ninguém interessado nesse banho. Por isso, tive de ser eu a perguntar se não podia dar um mergulho.
– Claro que sim – respondeu o comandante – nesse caso, só temos que baixar um bote para a água, por uma questão de segurança. Faça como preferir: pode descer no bote, descer pela escada, ou atirar-se da borda.
– Hum, atirar-me da borda, não. Já estou velho para essas coisas. Prefiro descer no bote – respondi eu.
O  problema era mesmo eu achar que a água devia estar gelada e que ainda morria de hipotermia ou algo do género.
Por isso, lá desci no bote com o membro da tripulação que tinha sido destacado para me acompanhar. Não levei máquina fotográfica porque tinha medo que se molhasse e preferia viver o momento a ter que ficar atrás da máquina.
Afastados uns metros do navio, com os meus óculos de piscina bem apertados, mergulhei o mais fundo que consegui, na remota esperança de ver algum golfinho que estivesse à minha espera. Mas nada – para baixo, tudo escuro como breu e para cima, só a silhueta do bote. Sem guelras nem pulmões gigantes, tive que regressar à superfície.
E ao regressar, dei de caras com o navio, visto de fora, pois claro – um doce para a vista. Nem me tinha dado conta que ainda não o tinha visto de fora, nem sequer quando saí no bote a caminho da água supostamente gelada. Todo o cenário era idílico para a minha memória recheada de imagens antigas de lugres bacalhoeiros fundeados, enquanto os seus dóris tinham saído para a pesca. E mais – com este tempo nublado e com um mar que mais parecia um espelho de água, dava mesmo a ideia de estar a ver o Santa Maria Manuela na Groenlândia, onde estas calmarias eram mais frequentes.
Bom, acordei do sonho e decidi nadar um pouco...
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Ainda fiquei algum tempo na água. Já tinha frio, embora ainda não tivesse escamas. Quando já estava a subir as escadas definitivamente, para ficar no navio, ouço o comandante do Santa Maria Manuela a dizer:
– Vejam! Há golfinhos à proa. Estão muito perto. Não querem ir no bote lá ter com eles? Têm que ser rápidos. Eles estão a afastar-se.
De certeza que eles ouviram as minhas preces ou os meus pensamentos. Nem pensei duas vezes – atirei-me outra vez para a água e subi para o bote. Outros dois colegas de viagem juntaram-se a nós. Tinha esperança que a minha mulher aparecesse para nos acompanhar, mas isso não aconteceu.
O pequeno bote zarpou a grande velocidade na direcção dos golfinhos. Os meus colegas tinham trazido máquinas fotográficas e eu não, por causa da azáfama do banho e do medo que a máquina se estragasse. Mas depois voltei a pensar – ainda bem que não trouxe – será bom para desfrutar do momento.
E não foi preciso esperar muito. Em menos de um minuto estávamos junto deles. Eram pelo menos vinte. A minha boca só se abria de admiração e emoção. Os seus corpos eram visíveis debaixo de água. Apareciam de todos os lados a grande velocidade! Saltavam, brincavam, eram curiosos. Empurravam-se uns aos outros, como crianças que se querem chegar mais à frente para ver melhor.
Parecia que estávamos no meio de um espectáculo de golfinhos, mas este era genuíno e de grande beleza. Nenhum deles parecia medir mais de 3 metros e a maioria teria menos de 2 metros.
Ainda bem que não levei máquina fotográfica. Depois de passar algum tempo a assistir ao espectáculo, no meio da alegria, perguntámos ao comandante do bote se achava que podíamos tentar nadar com eles. Ele respondeu que sim, que não via nenhum motivo contra.
Então mergulhámos o mais rapidamente que conseguimos, mas... Que é deles? Desapareceram! De dentro do bote disseram:
– Assim que vocês mergulharam, eles fizeram o mesmo e já não os vimos mais.
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Os golfinhos apareceram passados uns momentos a uns bons 500 metros do bote, na direcção contrária à do navio. Mas estavam muito mais nervosos e ariscos e já não estavam tão brincalhões nem curiosos.
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Na altura, pensei que fosse a última oportunidade para tentar o encontro imediato no meio deles. Com autorização do nosso comandante, lá me atirei novamente. A mesma cena de fuga endiabrada repetiu-se, com uma pequena diferença: dentro de água, ouvi as suas vozes com grande perfeição, tal e qual as dos muitos filmes e discos em que as vozes destes simpáticos mamíferos marinhos foram registadas. Só que fiquei com a nítida sensação destas serem ligeiramente diferentes, em tom de lamento, como quem diz "nós até estávamos a gostar da brincadeira, mas não gostamos de estranhos e vocês têm que ficar mais tempo para nos conhecermos melhor".
Sendo assim, lá subi desgostoso para o pequeno bote e tinha acabado de acrescentar uma linha na minha "lista de coisas a fazer, se possível". O que será? É fácil: nadar com golfinhos, claro!
Com tudo isto, já estávamos, com certeza, a mais de uma milha do navio, que se via com grande nitidez, no meio da calmaria. O comandante do bote ainda disse:
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– Os golfinhos já se estão a afastar demasiado. É melhor regressarmos, não vá a nossa gasolina acabar.
– Claro que sim – respondemos todos.
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Quando cheguei ao navio, tiritava de frio. E a dor de cabeça que me atormentava desde manhã cedo tinha aumentado de intensidade. Por isso, decidi tomar um comprimido para o enjoo e deitar-me debaixo dos cobertores. Adormeci.
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E o relato do meu filho Paulo Miguel Godinho continua.
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Costa Nova, 23 de Agosto de 2013
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quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Ida às Berlengas no Santa Maria Manuela - II

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É certo que o vento não soprava. De tarde aumentou um pouco, mas ainda estava fraco. Mas o Santa Maria Manuela não se fez rogado e, uma a uma, todas as velas foram içadas. Ao sair a barra, já estava em cima a vela grande e à proa, a polaca e a bujarrona. Ao início da tarde foram içadas, por esta ordem, a giba (à proa), a vela do traquete, a do contratraquete e por fim, a vela da mezena. Mas não se iam ficar por aí. Logo a seguir, seriam içados, por esta ordem, os gavetopes do traquete, do contratraquete, do grande e da mezena (ou seja, um a um, da proa para a popa). E assim passou o Santa Maria Manuela a navegar com todos os seus 11 panos orgulhosamente envergados nos seus mastros.
Foi curioso observar a confusão de cabos que abunda por todo o navio, até porque tenho sempre que pedir ajuda para montar convenientemente o catamaran que costumo alugar na Costa Nova. E assim, logo à partida, quando comparado com esse barquinho, a dificuldade aumenta enormemente, a partir do momento em que se começa a multiplicar por 11 o conjunto de cabos e apetrechos necessários para cada vela ou mastro: escotas, adriças, moitões, amantilhos, brandais, enxárcias, mais os cabos para amarrar cada vela quando descansa... E certamente me estou a esquecer de outros mais... É preciso tirar um valente curso. Mas a tripulação manejava toda esta parafernália com destreza e mestria.
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Ainda a respeito dos gavetopes, confesso que não conhecia o termo, mas rapidamente tentei inteirar-me do seu significado. "Gavetope" ou "gafetope" são as palavras portuguesas que derivam do inglês "gaff top", que significa topo da gávea. Portanto, o termo identifica as velas que são içadas no topo dos mastros. Pensava que estas seriam as famosas estênsulas, envergadas pelos antigos lugres, como o próprio Santa Maria Manuela, quando era mais novo. Mas não. Em comparação com as estênsulas, estes gavetopes são mais pequenos e certamente muito mais leves – uma das muitas inovações introduzidas na remodelação do navio, que não desvirtuam o seu aspecto.
Talvez devido à beleza e elegância que o navio espalhava no ar e espelhava na água, tivemos a simpatiquíssima visita dos verdadeiros especialistas da hidrodinâmica e da destreza aquática para completar o cenário – pelo menos três golfinhos apareceram para brincar na proa do navio e acompanhar a sua deslocação suave. Nunca tinha assistido ao vivo. Fiquei o tempo todo a admirar os seus movimentos rápidos e elegantes.
Pareciam ser eles que rebocavam o navio. Andavam de um lado para o outro, a vante. Apareciam acima de água, saltavam, mergulhavam, passavam por debaixo da proa do navio e apareciam do outro lado. Davam a sensação que viviam uma intensa alegria.
A viagem continuou calma e o vento até amainou um pouco. À medida que o sol se aproximava do horizonte, todas as cores ficavam mais quentes, quase parecendo queimar os objectos.
Entretanto, vimos uma nuvem curiosa por estibordo, por detrás da qual se escondeu o sol. Estava previsto alterar o nosso rumo sucessivamente para estibordo, invertendo o sentido da marcha em direcção a norte, para regressar. Passaríamos entre a Berlenga e os Farilhões. Mas, surpresa das surpresas (para mim, pelo menos), à medida que nos aproximávamos da referida nuvem, as condições de vento e de mar começam a alterar-se bruscamente. Passou a estar mais frio, pelo que tivemos que vestir uns casacos e passámos a ouvir uma zineira permanente.
Como o vento vinha de estibordo, de oeste, e ainda teríamos que andar algum tempo nessa direcção, para passar a sul dos Farilhões e inverter o sentido da marcha, assim que começámos a andar contra o vento, naturalmente as velas começaram a bater. Todos os panos ainda estavam içados e, principalmente, os gavetopes esvoaçavam numa dança permanente.
Não estava preocupado com toda a barafunda, porque um veleiro é um veleiro e eu sabia que assim que cruzássemos a linha do vento, as velas encheriam do lado contrário, o navio teria conseguido virar de bordo e prosseguiríamos a rota definida.
De qualquer forma, até que isso acontecesse, gerou-se alguma azáfama a bordo, para baixar os gavetopes, que continuavam endiabrados. O cenário era digno de registo, embora um pouco enigmático, porque ainda havia um lusco-fusco, a lua estava cheia e começava a espreitar por debaixo da tal nuvem, o navio tinha os holofotes do topo dos mastros acesos e a tripulação andava de um lado para o outro, embora houvesse alguma ordem em tais movimentos. A hierarquia de comando parecia funcionar e cada um sabia a sua função com maior ou menor rigor.
Eu observava e fazia experiências com a máquina fotográfica e com o telemóvel para tentar armazenar esse movimento – do mar, das velas, das gaivotas e dos homens, o melhor possível. Sim, porque situações destas, de movimento, luz e cor, não acontecem ao virar da esquina.
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E já disse gaivotas. Sim, não sei donde elas apareceram. Provavelmente vieram dos Farilhões ou da Berlenga. Estão habituadas a ver passar muitos veleiros por estas paragens. Mas a maioria deles são mais pequenos e não são tão vistosos como o Santa Maria Manuela. Imagino que as gaivotas tenham vindo para ver se estava tudo em ordem.
Certamente, não só acharam alguma parecença entre as velas do navio e as suas próprias asas, como também lhes pareceu familiar a forma leve e elegante como o navio sulcava as águas, muito semelhante ao seu próprio movimento de planadoras, quase sem esforço.
Ouvi-as, talvez por telepatia, dizer umas para as outras:
– Este não é o Creoula? É tão parecido!
– Não, são realmente parecidos mas esse costuma vir de sul e este veio de norte. Eu já vejo as suas velas desde que passou ao largo da Nazaré.
Ainda tagarelaram mais qualquer coisa, mas já não consegui ouvir. Depois, acho mesmo que pararam de conversar e começaram um movimento frenético de mergulho, seguido de refeição rápida, do tipo fast-food. Às vezes, os peixes fugiam-lhes. Mas elas não largavam o navio. Pareciam aproveitar a luz e o movimento. E não sei mesmo se não pousariam algures para descansar, aproveitando a boleia.
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Estava tão envolto nestes movimentos graciosos de asas e refeições rápidas, que quase me assustei... De repente, parecíamos ter ficado às escuras. Apagaram os holofotes dos mastros. As gaivotas não eram mais visíveis. E o corpo parecia querer um bom beliche para descansar.
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E o relato do meu filho Miguel continua.
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Costa Nova, 15 de Agosto de 2013
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sábado, 10 de agosto de 2013

Ida às Berlengas no Santa Maria Manuela - I

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Foi no fim de semana dos passados dias 20 e 21 do mês de Julho que, juntamente com a minha família, embarquei no navio Santa Maria Manuela, para uma viagem pequena e quase insignificante, mas inesquecível. Iniciou-se no porto de pesca da Gafanha da Nazaré, de onde saímos em direcção ao arquipélago das Berlengas. Passámos entre a Berlenga e os Farilhões e regressámos durante a noite, em direcção ao pontal da Galega, pesqueiro que fica a cerca de 14 milhas da barra de Aveiro e a 19 milhas da barra de Leixões, para um dia dedicado a actividades marítimas diversas.
Este relato será escrito mais como repositório de memórias, já que apesar de a viagem ser pequena em distância e tempo, foi muito grande em emoção e oportunidade.
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Chegámos ao porto de pesca da Gafanha da Nazaré ainda na noite de sexta-feira, com intenção de dormir a bordo, para não chegarmos atrasados para a partida, no dia seguinte, de manhã cedo. Aquele recanto em frente à empresa Pascoal parecia ter saído de um filme dos anos 50, com dois lugres reflectidos nas águas espelhadas da ria. Via-se que o Santa Maria Manuela estava à espera de qualquer coisa. Talvez soubesse que no dia seguinte iria partir para uma pequena aventura. O Argus ainda espera melhores dias.
Tivemos oportunidade de observar o navio com alguma atenção, sobretudo por dentro e, em particular, o camarote de "instruendos" que nos estava destinado. Não era propriamente um quarto de hotel de 5 estrelas. Mas, comparando com muitas fotografias antigas que em tempos me passaram pelas mãos, estará a grande distância do "rancho" que possuía quando era novo, sobretudo no que a espaço e a conforto diz respeito. Agora, a mesa de refeições já não fica junto ao beliche... Mas também não somos propriamente pescadores nem moços de convés. Temos o privilégio de embarcar como turistas de luxo.
Não me refiro propriamente ao tipo de luxo de massas dos grandes paquetes, quais Titanic modernos. É difícil de explicar. Talvez no fim deste relato se perceba a que me refiro.
Para alegria e gáudio nossos, era a primeira vez que iriamos navegar neste belíssimo navio e também a primeira vez que sairíamos a barra de Aveiro mais de 5 milhas mar adentro. Claro que havia o medo de passarmos enjoados toda a viagem, mas as previsões meteorológicas eram favoráveis. O tempo previa-se bom e o mar previa-se calmo. As condições seriam ideais para quem fazia uma primeira viagem deste género num veleiro desta dimensão.
A manhã estava calma e nublada, típica dos meses de Verão nesta região, com a sorte de não termos sido visitados por nenhum nevoeiro traiçoeiro, que normalmente impede a vista de alcançar o horizonte.
Ao chegarmos ao canal de saída da barra, sente-se alguma emoção. As pessoas que se encontram na margem acenam e tiram fotografias. O navio retribui com um apito estridente da sua ronca, apito esse que também serve para espantar as dezenas de barcos apinhados na boca da barra, local muito apetecível para a pesca desportiva.
A maioria dos pescadores que aí se encontrava também saudava o navio, mas algumas ovelhas negras, armadas em piratas das Caraíbas, que ocupavam ostensivamente o canal de navegação, desdenhavam da sua passagem. Alguns até chamavam nomes feios, porque eram obrigados a sair do supostamente fantástico local em que se encontravam. Em particular, um deles quase era abalroado pelo navio, se não tivesse conseguido manobrar o seu barquinho depois de ter levado um berro do mestre que vigiava a proa... Depois de se ver o seu pequeno barquinho a salvo, o seu pequeno comandante só teve tempo de dizer qualquer barbaridade, que na minha cabeça ficou registada como "para a próxima desvia-te, ó sua... sua... sua baleia branca sem dentes". E eu acrescento... Mas com mastros.
 
 

Bem, 10 minutos passados, já estávamos em mar aberto, numa calma absoluta, que contrastava bastante com as pequenas zaragatas da boca da barra, que mais pareciam saídas de um bando de gaivotas nervosas, em permanente discussão à volta do seu cardume. Tudo isso ficou rapidamente arquivado nas nossas memórias mais longínquas, sobretudo depois de tudo o que se ia seguir.
O curioso da navegação marítima é que tanto faz navegarmos num pequeno barquinho a motor, como num grande veleiro ou no maior dos petroleiros. Todos eles são obrigados a ter uma bússola tradicional e a carta de navegação da zona em que navegam, por mais sofisticados que sejam os instrumentos de navegação que tenham ao seu dispor. E em todos eles se calcula a posição, se define um rumo e se repete este binómio (calcular posição, corrigir rumo) vezes sem conta, sempre corrigindo o rumo que é alterado pelo vento e pela corrente, até chegarmos ao destino pretendido.
Claro que, no caso do Santa Maria Manuela, não só estão lá a bússola tradicional e a carta de navegação, mas também equipamentos de topo, como o GPS incorporado num sofisticado programa de navegação, onde aparece a derrota real do navio marcada sobre uma carta de navegação electrónica, dois potentes radares, uma girobússola, equipamentos de comunicações e o piloto automático, entre outros que não consegui fixar. Todos estes equipamentos fazem com que já não seja necessário marcar na carta linhas de posição (como por exemplo, azimutes ou enfiamentos). Basta olhar para o GPS e sabemos onde estamos. Mas mesmo assim, a posição era marcada na vulgar carta de navegação em papel, o que certamente será muito útil, na eventualidade de avaria de algum desses equipamentos.
Alguns colegas de viagem referiram que esta era mesmo a viagem ideal. A título de comparação, explicaram que, no ano anterior, em Setembro, fizeram uma viagem diabólica. O navio atingia inclinações de 45º – diziam. Não sei se seria assim tanto, mas não deve ter sido fácil. Descreveram que não se conseguia comer porque tudo andava de um lado para o outro. Era muito difícil dormir, porque mal se conseguiam segurar para se manter em cima do beliche, quanto mais dormir...
No fim da viagem, o saldo foram muitos enjoos, uma vela rasgada, copos e pratos partidos, mas com vontade de repetir, se possível um bocadinho mais calma. Era, sem qualquer dúvida, o caso desta viagem que relato.
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Foi com grande prazer que “abri” o Marintimidades à colaboração do meu filho Paulo Miguel Godinho, dono de uma grande sensibilidade perante as “coisas do mar e da ria”.
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Costa Nova, 10 de Agosto de 2013
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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Uma Aventura no Museu

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Amanhã, 8 de Agosto, os 76 anos do MMI
Uma Aventura no Museu – parece nome de filme –, mas, não, não é, nem sequer Uma Noite no Museu, passado no Museu de História Natural, em Londres. Quando muito, uma curiosidade de que os espólios são feitos…
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Motivada pelo acompanhamento do restauro de uma peça, fiz uma incursão pelas reservas de um museu. Há muito conhecia uma pintura que me encantava e que queria fotografar. Ainda não acontecera! Foi nesse dia.
Às vezes, não chego para as encomendas, tantos entusiasmos ganho, e não consigo dar aviamento a tudo quanto penso.
Tanta parra para tão pouca uva, dirão! Mas, olhem que não! Coincidências!...
Óleo empastelado, sobre madeira, sem data, de 260 por 188 mm, assinado no canto inferior direito, com as iniciais MF.
Não chego lá! Quem me ajuda? Socorri-me de documentação da época.
Mas, não é Manuel Tavares nem Carlos Fragoso. Tem o M do primeiro e o F do segundo, mas não é, não pode ser, de nenhum deles. Pintor regional? Será…
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Quanto à data, «atirá-lo-ia» aí para os anos 30 do século XX. Teria estado exposto na Semana de Arte Ilhavense, em 1932? Vou coscuvilhar. Mas, certamente. Seria daquelas peças que os Amigos do Museu, à época, teriam ido juntando para o tal desejado Museu dos Ílhavos, sob a batuta e o entusiasmo de Américo Teles?
Talvez a correspondência trocada entre a CMI, Rocha Madahil e Américo Teles esclareçam o nome do autor, o tal MF.
Baseado num postal, também não datado, edição de Victor Ferreira – cliché de Paulo Namorado – foi pincelado com as inebriantes cores da nossa ria. Comparem e sonhem. Espevita os sentidos e faz bem à alma.
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A ria da Costa Nova deixou-nos pérolas destas, pela paleta de alguém sensível e de fino gosto.

Labrega na ria – postal

versus


Óleo com acabamento a pastel

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Costa Nova, 7 de Agosto de 2013
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Ana Maria Lopes
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