sábado, 31 de agosto de 2013

Ida às Berlengas no Santa Maria Manuela - IV

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Quando acordei já todos tinham almoçado. A pescaria já ia longa e produtiva. A certa altura, alguém anuncia que viu um tubarão! Todos se aproximam para ver de que se tratava e, de facto, era sem dúvida um animal com cerca de um metro de comprimento, que nadava no seu vagar. Começou a comer tudo o que lhe aparecia pela frente e o pessoal queixava-se que o animal não deixava ninguém pescar. Passados uns minutos, apareceu outro idêntico. A tripulação chamava-lhes "canejas". São ligeiramente maiores que os cações e a sua aparição é frequente por estas paragens, normalmente longe da costa.
– Quem se atreve a ir agora para a água? – Alguém perguntou.
A mim, os animais pareciam ser inofensivos e até me apetecia ir tomar banho, mas o desconhecido falou mais alto, porque podiam aparecer mais e a situação descontrolar-se-ia. E, na altura, não se conseguia perceber se estas não seriam os tubarões-bebé brincalhões e se não estariam o pai, a mãe, os tios ou os primos a tomar conta, mais abaixo.
Mais tarde, confirmei que a espécie é, de facto, inofensiva e que não há registo de algum animal destes alguma vez ter atacado uma pessoa na água. Os animais querem mais é que os deixem em paz.
Mas a tripulação não lhes estava a achar graça. Já tinham partido algumas linhas e comido iscos, chumbos e tudo o que lhes aparecesse no caminho. Então decidiram tentar pescar um. Arranjaram um cordel mais grosso que as linhas de pesca normais e também um anzol mais forte, a que prenderam uma cabeça cortada de uma das muitas cavalas que tinham sido pescadas.
À primeira tentativa falharam – o peixe comeu o isco mas não ficou preso. A segunda tentativa foi ensaiada pelo mestre, que supostamente tinha mais experiência. E, comprovou-se, porque foram bem-sucedidos, com um pequeno contratempo – o animal foi içado para bordo e esperneava, barbataneava, rabeava e dava cabeçadas por todo o lado. Filmei tudo e já revi. O mestre, entendido no assunto, tentou pegar-lhe pela cauda, mas o animal foi mais esperto – num golpe de rins muito contorcionista, conseguiu morder-lhe o braço de tal forma, que ainda hoje lá deve ter os dentes marcados, apesar de serem relativamente pequenos. Mas antes de ir à enfermaria, o mestre ainda teve tempo e força para o apanhar definitivamente e dar o golpe fatal.
A pesca desportiva a que a maioria dos instruendos e da tripulação se tinha dedicado resultou em quatro caixas de peixe fresco. Para além da caneja que, já arranjada e pronta para consumo por especialista, ocupava exclusivamente uma das caixas, havia (salvo erro) por ordem decrescente de quantidade, cavalas, salmonetes, fanecas, besugos, sargos e ruivos.
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A tripulação encarregou-se de distribuir irmãmente o peixe pelos instruendos que quiseram levar alguns exemplares para cozinhar em casa. A maioria dos colegas não quis levar nada, pelo que ainda sobrou bastante. Bom destino teve, certamente.
Por volta das 5 da tarde, o navio levantou o ferro e fez-se à barra de Aveiro. Parecendo que não, ainda teríamos que percorrer cerca de 14 milhas, o que, à velocidade de 7 ou 8 nós dá cerca de 2 horas.
Estava calor e soprava uma leve brisa. À medida que o sol baixava, ficava mais frio, mas a vista ficava mais regalada, com aquela cor alaranjada a ser reflectida pelos objectos mais claros.
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O navio entrou a barra devagarinho, sem a confusão que tinha havido no dia anterior de manhã, com os pescadores desportivos e seus barquinhos. A maré estava baixa. À medida que nos aproximávamos do cais do navio, onde já esperavam familiares e amigos, começámos a perguntar-nos como iria atracar. Para surpresa nossa, ainda conseguiu arranjar espaço para dar a volta, atracando por bombordo, para ficar pronto a sair novamente.
A manobra de atracação não é fácil, sobretudo tendo em conta que a maré estava vazia e que havia alguma corrente e vento a dificultarem as operações.
No entanto, tudo correu sem percalços. Tive oportunidade de verificar, com agrado, como funciona a hierarquia a bordo, sobretudo em situações mais delicadas, como esta atracação. Só se ouvia uma voz – a do Comandante. Por acaso, a tripulação não pareceu estar muito treinada nestas manobras. A hierarquia intermédia parecia estar um pouco desorientada e os marinheiros ficavam a aguardar ordens que demoraram a chegar.
O Argus assistia impávido e sereno a todo o processo. Certamente pensaria que algum dia pode voltar a ser a sua vez de lavar a cara e ser o suporte para uma tal experiência, ou outras viagens mais importantes.
Toda a manobra demorou mais de meia hora. Nós já estávamos com alguma vontade de sair, porque o dia seguinte era de trabalho normal. Fomos buscar o peixe a que tivemos direito e, depois de instalada a escada de portaló, lá abandonámos o navio com aquela lágrima de saudade no canto do olho, mas cheios de tanta emoção e aventura.
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Foi com grande prazer que «abri» o Marintimidades à colaboração do meu filho Paulo Miguel Godinho, dono de uma grande sensibilidade perante as «coisas do mar e da ria».
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Costa Nova, 31 de Agosto de 2013
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