quarta-feira, 31 de março de 2010

A ponte da Vista Alegre



Quando recolhi elementos para construção actual da Ponte das Duas Águas, que dá acesso à zona das praias, passaram-me pelas mãos alguns dados da ponte da Vista Alegre, que não desperdicei.
Sempre foi um local, aqui na região, aprazível, até onde sempre gostei de dar uma passeata – seria o fascínio da ria… e o vigor da juventude. Para aí há uns 45 anos, lembrava-me que o transporte de passageiros entre as duas margens da ria, era feito por uma barcaça, movida à vara.

Era assim a travessia…pelos anos 30


Por trás da proa do barco moliceiro, vê-se a tal barcaça, para travessia de peões.
Apesar do cenário bucólico e da paisagem idílica, uma ponte fazia muita falta, pois a travessia da barcaça, em dias de vendaval, constituía um perigo.

A travessia da ria, pelos anos 50


Depois de um abaixo assinado, entregue em Dezembro de 1974, em que o “pai” da ideia, – João André Patoilo – dava conta da necessidade da construção de uma ponte que unisse as duas margens da ria, o empreendimento teve o seu início em Abril de 1978, começando a dar passagem a peões em Setembro do mesmo ano. Teve a sua inauguração oficial em 6 de Janeiro de 1979, já fez trinta anos.
Com a presença de várias autoridades e depois dos discursos da praxe e do “passeio” a pé pela nova ponte, foi servido no Refeitório da Fábrica da Vista Alegre, um convidativo almoço que reuniu cerca de 100 convidados.
Assim acabou a travessia da barcaça, que após a inauguração da primeira ponte que naquele local existiu, realizada em 1835, começou a transportar para um ou outro lado da ria quantos à fábrica vinham prestar o seu trabalho, ou à vila tinham que se deslocar.
A ponte ainda lá está, já foi restaurada por algumas vezes, mas restauro esse que deixa sempre a desejar.
O seu tremelicar, ao transpô-la, faz-nos lembrar todos os acidentes com pontes em que o país tem sido fértil, ultimamente.

Actual ponte da Vista Alegre


Já agora, não faltaria olhar só pela ponte. E a Capela da Vista Alegre, com todas as suas riquezas escultóricas e pictóricas? E o bairro operário? E as bonitas moradias? E os arruamentos e árvores exóticas e centenárias? E o arquinho de acesso pedonal à ponte?
Faz pena passar hoje pela Vista Alegre, local outrora idílico e cuidadosamente preservado, actualmente votado ao total abandono.

Imagens – Arquivo pessoal da autora

Ílhavo, 31 de Março de 2009

Ana Maria Lopes


quarta-feira, 24 de março de 2010

Signos pictóricos nos barcos - III


Outro exemplo expressivo, captado também nos anos 60, é a proa da barca da arte xávega de Monte Gordo. No beque, uma cabeça de cobra. Local para a cabeleira, ocasionalmente retirada. Olhos bem delineados, postados na proa, sem delimitação da cara.

Proa da barcaMonte Gordo – Anos 60

Estaleiro de Quarteira – 2007


Um dos últimos clichés foi em estaleiro de Quarteira (2007), à proa de um elegante bote, o CATRAIA. Pena é que já não estivesse ao serviço das pescarias e se destinasse a adorno de um jardim, onde, por certo, já não estará.
É assim que se vão apagando do nosso litoral, signos pictóricos, puros e coloridos, fruto do peso da tradição imagética das embarcações e das convicções “ ingénuas” do mestre ou proprietário.

Fotografias – Ana Maria Lopes

Ílhavo, 24 de Março de 2010

Ana Maria Lopes

sábado, 13 de março de 2010

Signos pictóricos nos barcos - II


Cerca de 20 anos mais tarde, encontrei um chamado saveiro sem bicos, com o mesmo tipo de decoração, a vermelho e negro, na Fonte da Telha.



Sempre sugestivo… Anos 80


Sesimbra foi um dos locais onde este signo pictórico foi bastante usado. E ainda nesta primeira década do século XXI, recolhi estes vestígios «actuais», mas comprovativos de uma tradição ancestral ainda viva.

Proas de  barcas de pesca de aparelhos de anzol, em Sesimbra2007


Calão, nos anos 60, na praia da Quarteira

É o típico calão algarvio, com um beque em cornicho de madeira, de nome STO. ANTÓNIO, com a cara branca bem delimitada. Completam o arranjo protector mágico da embarcação, dois olhos, a bombordo e estibordo, de um apreciável realismo, bem delineados, com sobrancelha expressiva e prolongada.
Não raro, seria o uso de cabeleira de pele de carneiro, neste caso para enfeite, que envolveria o rabecote da proa.

(Cont.)
Ílhavo, 13 de Março de 2010

Ana Maria Lopes

sexta-feira, 5 de março de 2010

Signos pictóricos nos barcos - I



Já desde tempos imemoriais (existem vestígios, na civilização egípcia) que o barco é considerado um ser vivo, um ente anímico e, como tal, com determinadas tradições, assim tratado.
Durante a própria construção, em certas zonas do país, sobretudo nortenhas, ainda se usam determinados sinais protectores, para que esta corra sem incidentes, protegida de maus-olhados ou malquerenças.
À embarcação é atribuído um nome feminino (hoje já não é tanto assim), que lhe é conferido por uma madrinha, o que sugere a ligação a uma ideia de fertilidade.
A cerimónia do bota-abaixo é toda ela cheia de rituais, plenos de significado simbólico.

O uso de talismãs ou amuletos, a bordo, cada vez mais caída em desuso (par de chifres de animais, signo-saimão, ferradura, figa, etc.), fazia parte integrante do imaginário popular, sempre na defesa da própria embarcação de tudo quanto fosse ruim.

Para além de objectos em si, também existem signos pictóricos, que funcionam igualmente como protecção mágica dos barcos. São de vária estirpe, mas aquele que mais me chamou a atenção, até porque nesta região não é habitual, foi a pintura de um gigantesco olho, à proa, a bombordo e estibordo.
Os pescadores do centro e sul do país chamam cara do barco à zona da proa, de um e outro lado do casco, zona, normalmente, destacada por pintura a cor diferente e guarnecida, tantas vezes, com a imagem de olhos.
O barco com olhos veria melhor o caminho, em dias de nevoeiro e encontraria mais facilmente os bons pesqueiros?...

O significado dos olhos, ainda que estes, no imediato, com feição mais restrita de amuletos contra o mau-olhado, não pode dissociar-se da sacralização do barco pela sua consagração a uma divindade.
Do antigo Egipto, adoptaram-no os fenícios, os gregos, os romanos e, assim por diante, até os portugueses, em cujas embarcações o encontramos ainda.
Já na antiga Grécia, desenhar ou gravar olhos nos objectos servia de mágica protecção contra o mau-olhado, para os defender e a seus donos das invisíveis forças do mal. No caso das embarcações, parece que a sua origem é atribuída a Ulisses, lendário guerreiro grego, em cuja barca estaria representado o olho de Zeus.

Se têm alguns efeitos em termos de protecção, não sei, mas lá que são bonitos, são!
Os mais graciosos e pormenorizados olhos, num processo de simplificação, podem ter dado origem a outros símbolos bastante mais singelos: círculos, estrelas, cruzes ou imagens.
Exemplos dos casos mais expressivos, que ao longo de quarenta anos, fui encontrando, ao longo do litoral centro e sul do país:

Foi na Ericeira dos anos sessenta que deparei com o primeiro exemplo deste tipo de decoração, tão do meu agrado.

Lancha típica da época


Um grande, pormenorizado e expressivo olho decorava, igualmente, a cara branca, não delimitada, deste belo saveiro, na Costa da Caparica, por volta de 1965.

(Cont.)

Ílhavo, 5 de Março de 2010

Ana Maria Lopes