Com o previsto aumento da família, também convinha pensar num espaço traseiro de lazer para os pequenotes, que, entretanto, chegariam.
No meio daquele mobiliário característico das recoletas da Costa-Nova, salvaram-se umas camas e lavatórios de ferro, bem bonitos.
E da parede? – uma fotografia de um elegante e esbelto lugre, em dia de bota-abaixo…Mesmo sem identificar o navio à primeira, mais valia, desmontar o quadro, limpar a fotografia amarelecida pelo tempo, e guardá-la com carinho. Um lugre a decorar a parede de uma recoleta que pertencera ao Avô Pisco, só poderia ter a ver com a vida dele: - ou navio da empresa, ou navio que teria comandado. Conclui, de facto, que capitaneara o Golfinho de 1912 a 1914, teria então 27 anos.
A vida do meu Avô, que fizera mais de quarenta anos de mar, despertava então o meu interesse para o modo singular e estranho da vida destas gentes que labutaram na faina maior: os perigos das viagens naquele tempo, feitas só à vela; as condições sofridas e precárias daquele tipo de vida, por vezes certamente angustiantes pelas poucas ou nenhumas notícias da família; “as ralações que a minha Avó sofrera com coisas que nunca chegaram a acontecer”, como ela me dizia.
Mais: – a tal fotografia também se revelaria de valor museológico, aquando da aturada e entusiástica pesquisa, ao tempo, da preparação da exposição de fotografia A Frota Bacalhoeira, durante Maio/ Junho de 1999.
O saudoso Francisco Marques e eu parecíamos dois putos radiantes a olhar os cromos, quando tínhamos a sorte de encontrar um navio (em fotografia), que ainda não constasse das nossas aquisições.
Não é que a amarelecida relíquia encontrada na recoleta da Costa-Nova, era, nada mais, nada menos, que o lugre Golphinho, da praça da Figueira da Foz?
O Golphinho, em dia de bota-abaixo
Tivera uma existência muito efémera, mas digna de se recordar.
Segundo consta do Catálogo da referida exposição, o Golfinho foi construído por José Maria Bolais Mónica, nos estaleiros da Murraceira, na Figueira da Foz, para a Empresa de Pesca da Foz do Mondego. Fora, então, considerado o melhor e maior navio do seu tempo.
O seu bota-abaixo tivera lugar a 3 de Março de 1912; porém, quando começou a deslizar, saiu da carreira e enterrou o cadaste no lodo. Só depois de porfiados esforços e aproveitando outras marés vivas, foi possível pô-lo a flutuar. A terceira viagem, tendo saído de Lisboa a 6 de Maio de 1914, fora de um adeus sem fim…
Londres, 30 de Maio de 1914. Um radiograma do paquete Corinthian dizia que o Corinthian teria salvo o capitão e a tripulação em número de 45 homens, pertencentes ao navio de pesca Golfish da Figueira da Foz. O Golfish bateu contra uma montanha de gelo devido ao denso nevoeiro que caiu às 3 horas da madrugada, sendo abandonado em chamas.
Quadro num restaurante da Gafanha da Nazaré
Não fora outra coincidência, e nada mais saberia, para lá do que ouvira do meu Avô.
Em meados dos anos 80, fizeram-me chegar às mãos cópia do Boletim Mensal da Liga dos Oficiais de Marinha Mercante, ano I, nº 5 de Agosto, de 1914, intitulada Naufrágio do “Golfinho” que expunha o Protesto e relatório do naufrágio e abandono do lugre português “Golphinho”, feitos a bordo do vapor inglez “Corinthian”, de cinco páginas.
É evidente que não vou editar todo o relato, mas apenas respigar o seu texto, recuperando algumas passagens que me parecem dignas de nota, respeitando a ortografia da época.
Por amável deferência de nosso presado consocio Ex.mo Sr. Manoel Simões da Barbeira publicamos o singelo e bem elaborado relatório de mar relativo á perda do seu belo navio que… abalroou com um iceberg na noite de 29 de Maio p.p. O “Golphinho” que pertencia á praça da Figueira era propriedade da Sociedade de Pesca da Foz do Mondego e era talvez o melhor navio português que ia á Terra Nova.
O capitão Barbeira e piloto sr. Arthur Oliveira da Velha são oficiais distintos da especialidade a que se dedicam e foi devido á sua muita perícia que, habilmente obstaram a que o navio sossobrásse, dando tempo a que conseguissem passar para bordo do “Corinthian”, que tomou todos os tripulantes, entre os quais José Pedro Martins em estado grave e que infelizmente foi morrer ao hospital de Havre.
Só quem anda nesta vida do mar, vida de constante combate contra inimigos traiçoeiros e poderosos, pode avaliar o que seja pelo meio duma noite escura sentir de repente o navio abalroar contra um obstáculo invisível e inesperado, ouvir o ranger do cavername, o esfacelar do costado, o estalar dos mastros partindo-se e a derrocada dos mastaréus, das enxárcias, dos cadernais, dos estais, por entre o bater de pano, os gemidos dos feridos e os grito de todos! Quanto animo e sangue frio precisa então ter o capitão para, pensando por todos, os serenar e lhes salvar as vidas em perigo! Aí então sobressai a grandesa da sua missão e a nobresa desta vida feita toda de dedicações obscuras e de brilhantíssimos feitos quasi sempre ignorados!
Foi de noite e com nevoeiro que o “Golphinho” bateu na ilha de gelo que por ali vinha no seu deslisar funesto, sem que nada a denunciasse. (…)
Serenados os animos o capitão, que modestamente no seu relatório nunca fala em si, fez tudo por salvar o navio, mas reconhecida a impossibilidade pelo péssimo estado em que ficou após o abalroamento, tratou então de salvar as vidas confiadas à sua guarda.
Felizmente quando ia tomar a resolução de mandar abandonar o navio entregando-se e aos outros a uma sorte incerta em pequenos botes, apareceu o paquete inglez “Corinthian” da Allan Line, em viagem de Montreal para o Havre, que prontamente se aproximou e os recebeu a bordo. O seu Comandante fora de uma bondade extrema, deixando os náufragos no porto de Havre e d’aí vieram num paquete para Lisboa.
Segue-se um excerto do protesto em si, documento com o grafismo e o estilo formais da época:
Era assim a vida do mar em 1914.
Manuel Simões da Barbeira – Avô Pisco
Mas as coincidências não ficam por aqui. Entre este naufrágio, suas causas e condições de salvamento, há muitas semelhanças com o desastre do famoso e mítico Titanic, a que um dia hei-de voltar.
Fotografias – Arquivo pessoal da autora
Ílhavo, 3 de Outubro de 2008
Ana Maria Lopes
Boa noite.
ResponderEliminar"O saudoso Francisco Marques e eu parecíamos dois putos radiantes a olhar os cromos, quando tínhamos a sorte de encontrar um navio (em fotografia), que ainda não constasse das nossas aquisições."
Pego precisamente neste seu excerto para lhe agradecer mais um artigo que me diz bastante, pois porto-me exactamente como um puto radiante atrás de fotos "do bacalhau" há mais de 2 anos e revejo-me no meu passado de várias colecções de cromos que fiz, estes agora "digitais". Já tinha esta foto mas muito mais pequena e guardadei a(s) sua(s) com contentamento.
O "Golfinho" é mais um exemplo da bela construção naval do passado, uma obra de arte com homens lá dentro. Como tantos outros teve vida curta, mas as fotos imortalizam-no e o protesto e relatório do naufrágio que nos mostra completa perfeitamente a curta vida do navio.
Para quando a edição de um álbum fotográfico de navios do bacalhau pelo Museu Marítimo de Ílhavo? São imensos e já percorri toda a base de fotos do Museu, mas é uma pena que sejam fotos tão pequeninas e de fraca resolução.
Se os tempos fossem outros, propunha a edição destes navios... em cromos.
Cumprimentos,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
...
ResponderEliminarReunidos os oficiais e principais da equipagem disse o capitão: que em nome do armador, carregadores, recebedores e pessoas outras a qualquer título interessadas no navio e/ou no seu carregamento, protestava contra cerração e gelo e contra quem de direito for e pertencer possa, por todos os prejuízos, perdas e lucros cessantes e jurava vir a ser um dia o acto investigado e atestado por uma sua neta que levaria ao conhecimento público tal facto, invocando a sua memória e tudo isto por inspiração numa simples fotografia do "Golfinho" encontrada numa recoleta da Costa Nova. ...
Parabéns pela excelente narração e o meu obrigado por me fazer lembrar os antigos termos do Protesto de Mar.
Cumprimentos
JR
Muito boa tarde
ResponderEliminarDepois de mais um dia de mar, com duas das minhas netas, is que me deliciei ao ler estas crónicas e respectivos comentários.
Parabens à neta do Cte Manuel Simões da barbeira e respectivos comentadores.
E ainda queriam que eu contasse alguma coisa da minha experiencia de "regalista", nome que ouvi aos pescadores da minha terra a quem andava à vela por diversão.
Depois do que tenho lido acho que nunca saí da Malhada.
Boa semana e eu por aqui vou lendo os artigos e respectivos comentários.
Bom tempo mar e horizonte
Boa noite meus senhores e senhoras bem hajam.Mais uma béla história do mar dos gelos ,ém que é interveniente o lugre golfinho,lugre de pouca vida ,más éra assim com todas as dificuldades os tempos de então,eu pescador do bacalhau dos anos -60- ,deconheçia que existia este e com certesa outros lugres desses tempos,embora no meu tempo de rapás ,houvesse aquelas revistas que o gremio mandava para casa dos pescadores e recordo que nós rapases da altura devorava-mos as tais revistas só para ver o melhor lugre éra todos os dias a folhear as revistas.Que grande sacrificio destes homens na altura !Abalroado por ayceberg!Sim isto é o que eu chamo de grande infelicidade ,porque no mar dos gelos,das névoas , dos temporais e sem meios que pudesse identificar como agora os hÀ,éra muito difiçil as navegações nesses tempos,por isso presto minha homenagém aos Ofiçiais e tripulação de então e todos que nesses e outros tempos sucumbiram nesses mares,dos gelos como eu lhe chamo...sem mais um abraço ao Fangueiro ,ao João reinaldo e as Sras.bem hajam ... Jaime Pontes...
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