quarta-feira, 30 de abril de 2008

Bota-abaixo do São Jorge (Parte II)

Aguardava a hora da maré o São Jorge, na carreira, donairoso e altaneiro, na imponência da sua altura, de cores claras, hasteando o mareato colorido, da proa à popa, esvoaçando ao vento.
Um bota-abaixo na Gafanha é sempre um acontecimento festivo: no estaleiro e em todos os caminhos em redor via-se muita gente para assistir ao sempre emocionante espectáculo. Ansiedade! Emoção! Expectativa! E na ria, toda a frota bacalhoeira, embandeirada em arco pela “camaradagem” de mais um barco que a ia enriquecer!
O São Jorge era um navio-motor que deslocava mil toneladas com capacidade para catorze mil quintais de pesca. As suas características principais eram: comprimento, 54,15 metros; boca, 10,48 m. e pontal, 5,62 metros. Embarcava uma tripulação de 80 homens, entre os quais 62 pescadores. Dispunha de um motor principal de 600 H.P. e motores auxiliares, guinchos, sonda eléctrica, radar e câmara frigorífica para isco e conservação de alimentos, com capacidade de 60 toneladas. Foi seu primeiro capitão o Sr. João dos Santos Labrincha.

São Jorge é um nome que anda ligado à História de Portugal, desde que Portugal nasceu. Era o grito de guerra – “S. Jorge e Portugal!” – que levava vitoriosamente os nossos exércitos até à derrota dos inimigos. Quis a empresa dar-lhe esse nome como um símbolo e eu, como madrinha, ofereci-lhe uma bonita imagem do Santo a cavalo, de espada em riste, a lutar com o dragão, o mar, que sempre viajou durante anos, a bordo, na Câmara dos oficiais, até 1973, ano em que a empresa o vendeu. A imagem, depois de ter sido cedida ao MMI. para a exposição Faina Maior até 1999, actualmente, voltou à procedência, ao fazer parte dos meus bibelots de estimação, para que olho com enlevo.

Em tribuna construída à proa da nova unidade, tomaram lugar muitos convidados e personalidades, dentre os quais os Senhores Arcebispo-Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal, Sr. Comandante Tenreiro, Governador Civil do Distrito, Dr. Francisco do Vale Guimarães, Almirante Alves Leite, Director Geral de Marinha; Engenheiro Higino de Queirós, presidente da C. R.C.B.; presidentes das Câmaras Municipais de Aveiro e Ílhavo; Comandante António Caires da Silva Braga, capitão do Porto de Aveiro; presidente e vogais do G.A.N.P.B., os comandantes militares de Aveiro, representantes oficiais da base aérea de S. Jacinto e muitos armadores e capitães da frota bacalhoeira.

Tribuna dos convidados, pela proa do navio

Em momento solene, sua Ex.ª Reverendíssima benzeu a nova embarcação, augurando-lhe “um bom futuro, atendendo ao espírito verdadeiramente cristão de quantos nela trabalharão em árdua e perigosa tarefa, confiados unicamente na fé em Deus”.

Bênção do navio


Antes, porém, do lançamento, fizeram-se os discursos da praxe, falando primeiro pela empresa armadora o Sr. António Cunha, seguido pelo Sr. Comandante Tenreiro, que afirmou:
– “Se meditarmos um pouco na obra feita, na renovação da frota, encontraremos motivos de regozijo por tudo quanto se fez no nosso país. (…) Foi em 1938 que o lugre Novos Mares foi lançado à água seguindo o caminho iniciado com a construção do Brites, nos estaleiros do Mestre Mónica, na Gafanha da Nazaré. Sem que mesmo se tivesse a plena consciência disso, havia de constituir a vanguarda da nossa frota da pesca do bacalhau, a mesma que hoje se afirma como a primeira do mundo”.

Após o discurso do Sr. Governador Civil e do Mestre Manuel Maria Mónica, finaliza o Sr. Ministro da Marinha:

– (…) “O São Jorge vai descer na carreira. A este, outros navios se seguirão. É a tradição que se mantém. O Governo do Estado Novo jamais deixa perder o que signifique valor nacional”.

Oradores e convidados na tribuna

Realçou-se que o lançamento à água de um navio para a pesca do bacalhau representava um acréscimo de riqueza e de trabalho, exprimindo a continuidade de uma política que desde há 30 anos vinha operando, em paz, uma transformação profunda na vida da Nação.
Lá no meu canto (dada a minha pequenez) nem era notada a minha presença; eu pouco ou nada percebia daqueles “chavões” que mais tarde foram sendo desmistificados à luz das épocas que lhes sucederam, susceptíveis de várias interpretações e considerações.

(Cont.)

Ílhavo, 30 de Abril de 2008

Ana Maria Lopes


2 comentários:

  1. E aqui está o seu blog, a construir-se ao sabor do mar que a Ana Maria nos vai devolvendo com a riqueza das palavras de quem vive e sente estas coisas desde sempre.

    E tudo irá certamente acontecer como se de súbito nos reencontrássemos todos num imenso maríntimo...

    vieira da silva

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  2. Boa noite.

    É com enorme gosto que vejo um novo blog a surgir também ele dedicado ao mar e em especial à Faina Maior.
    Conheço algum do trabalho da Drª. Ana Maria Lopes desde há uns 2 anos, altura em que iniciei investigação a fundo sobre a pesca do bacalhau e tal tem-se reflectido no meu blogue quase diáriamente.
    Sou natural das Caxinas e aos 27 anos emigrei para a Inglaterra e neste momento Polónia. São já quase 6 anos fora de Portugal e as saudades e falta de proximidade ao mar e suas gentes fez com que me dedique sempre que posso a tudo o que se relaciona com o mar quase obcecadamente, desde as memórias do meu pai e embarcações em que andou, como catraias, motoras e bacalhoeiros até ao modelismo naval, publicações, relatos e fotos relacionadas com o bacalhau.
    O meu avô paterno fez 15 campanhas de pesca ao bacalhau, 9 no “Rio Lima” e 6 no “Santa Maria Manuela” e o meu pai fez 8 campanhas no navio-motor “Novos Mares”. O seu artigo sobre o bota-abaixo do “São Jorge” inclúi uma foto onde ao longe se vê outros dois navios da mesma classe e muito provavelmente um deles será o “Novos Mares”.
    São vários os blogues que sigo diáriamente ligados de algum modo à pesca do bacalhau, entre eles o do “Creoula” e muito atentamente o blog do “Santa Maria Manuela”, lugre no qual navegarei um dia e não haverá enjoo-de-mar que me detenha! Seguirei também o seu blogue, pois sei que valerá a pena.

    Atentamente,
    António Fangueiro
    www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt

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