quinta-feira, 29 de junho de 2023

Recriação da pesca do "chinchorro", na Torreira

 

Há dez anos, a Ria, na zona norte, tem andado muito activa. E andarilhámos para lá.

Não podíamos faltar e assim foi. Que grande madrugada! Mas que belo dia de calor estival, ao sabor da brisa lagunar e do pé na areia e na água.

 

Ao chegar, quando se começa a sentir aquele odor a maresia, numa comunhão de céu, água e serranias longínquas envoltas em neblina, o espírito brilha, em fulgor, tanto quanto a laguna espelha a luz do sol, que, de ter acordado, ainda se espreguiça.

 

Toda a embarcação que navegue na ria, para quem está na borda, tem um efeito de contraluz, que seduz os espíritos mais sensíveis.

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Efeito de contraluz
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A belíssima, colorida, e elegante bateira da chincha (ou chinchorro) e os seus camaradas já treinavam, fazendo exercícios de aquecimento e encadeando os assistentes, ao rasgar com seus longos remos, o brilho estonteante das águas.

Ambiência e cenário não nos faltavam.

Com maré cheia, em acolhedora baía em que a água banha a areia, em seis ou sete lanços, os “artistas” e embarcação recriam o espectáculo.

Quis olhar com outros olhos, pois ainda me lembro de se pescar à chincha, na Costa Nova, alando a rede para a borda, para as coroas ou para a própria bateira.

A arte do chinchorro, maior que a da chincha é uma arte lagunar de arrasto. Duas mangas de cerca de 25 metros conduzem à bocada, onde se insere o saco de cerca de 4.50 m, que vai adelgaçando, em direcção ao fundo. As mangas terminam pelos paus de calão, a que se prendem os cabos que manuseiam a rede – o do reçoeiro, que fica em terra e o da mão de barca, que regressa à borda, depois de largada a arte. A tralha das pandas, actualmente formada por pequenas bóias de esferovite atijolada, debrua a parte superior da rede, enquanto a tralha dos chumbos constituída por pequenas malhas de cerâmica de dois furos, os pandulhos, fazem mergulhar a rede, bordejando-a, inferiormente.

Explicada no essencial a arte, vamos à faina.


Impulsionada a bateira…

Impulsionada a bateira, dois ou três homens ficam com o cabo de terra, nas mãos, aguentando-o fortemente, de água pela cintura.

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Seguram o reçoeiro
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Num remar batido, lesto e ritmado, com dois longos remos, terminados pelas macetas, junto ao punho, a bateira afasta-se.

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A bateira lançando a rede
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Vai lançando a rede em arco, até que abica e dois ou três camaradas saltam para a água, sustendo o cabo da mão de barca.

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Seguram o chicote da mão de barca…
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Entregam-se atentamente ao alar das redes, puxando as mangas, deixando-as descair uma sobre a outra e, ao mesmo tempo, fechando o cerco.

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Alam a rede, fechando o cerco

Hoje, o resultado da pescaria não foi nada animador – nada mais que uns peixitos prateados e saltitantes, umas enguiazitas serpenteantes e, que se visse mesmo, uma solha maior, espalmada. Caranguejos, de várias espécies, esses, eram mesmo em abundância. E os lanços repetiram-se as vezes necessárias à observação dos mirones e até que a caldeirada, a preparar na praia, lhes compensasse o esforço. Putos de ontem, homens de hoje! Homens da ria, habituados a tirar dela o seu sustento! Grande gente, experiente, sabedora e trabalhadora! Dignos de apreço! Desejarão, porventura, outra vida para seus filhos!

E eu, tão, tão encalorada, calcava a areia escaldante. Face afogueada e brilhante, olhos ardentes e lábios salgados, desejava mesmo uma sombra pacificadora e uma aguinha fresca.

E aí me estatelei na areia, ao abrigo do excesso de sol, mas não da paisagem – pinheiros e arbustos verdejantes, recortados no azul do céu, reclinavam sobre a areia que a água lambia, na sua languidez habitual.

E ao longe, observava os preparativos da caldeirada à moda antiga. Com um tacho pendurado numa vara enterrada, em diagonal, na areia (o vasculho, auxiliar da arte), e uma fogueira improvisada com umas ramagens e uns gravetos, o que dava mesmo nas vistas era o colorido dos «pozes de enguia”.

E entretida a olhar as bandeiras novinhas em folha que flutuavam, plasmadas no azul do céu, do que me lembrava mesmo é que faz muita falta, na nossa Costa Nova, uma praia fluvial protegida, com condições adequadas, uma praia mesmo AZUL.

Quem se lembra do que sobrou do Bico, saboreou e viveu os prazeres da ria, das embarcações e das barracas riscadas da Biarritz e até de San Sebastian, sente-lhe mesmo muito a falta, sobretudo para os jovens de agora.

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Praia do Monte Branco, 29 de Junho de 2013

Ílhavo, 29 de Junho de 2023

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Ana Maria Lopes

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terça-feira, 20 de junho de 2023

Na Escola Primária da Gafanha da Encarnação

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Em época de exames, – veio-me à cabeça um capítulo da minha vida escolar em que também teve lugar a escola Primária da Gafanha da Encarnação.

Vou para a Costa Nova, no Verão, desde que nasci, sempre para a mesma casa, apesar de algumas transformações.

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O bonito palheiro em 1948
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Antes de ter a arquitectura actual, era um bonito palheiro de rés-do-chão em adobe, com varanda, o terceiro da Calçada Arrais Ançã (lado sul), a partir do actual Largo da Marisqueira, de onde se usufrui uma paisagem inebriante e mutante, de dia e de noite, ao amanhecer e ao entardecer. Era esta a vista da minha casa, até 1973, inserida num horizonte sem fim.

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Mota actual, em 1942
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Com o aterro parcial da laguna (seria necessário?), foi-me roubada.

Costa Nova dos meus encantos!!!!! Adeus, bateira “Namy”, atracada ao moirão multicolor, em frente a casa! Adeus, serventia do embarcadouro da barca! Adeus, travessia, para a “Bruxa”. Adeus, pesca, ao caranguejo da muralha com fio, pedra ou concha e uma lasquita de bacalhau! Também passaram à história as belíssimas atracações da barca, ao perto, em dias de nortada ou de inverno, com marola forte e vento rijo, não sei se à Labareda nem se não. Mas lá que eram bonitas, certeiras e arrojadas, eram.

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Cenário frente a casa, em 1973
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Mas, voltando à história, frequentei a 1ª e 3ª classes da Escola Primária, nesta linda praia, entre ria e mar situada.

Foi minha professora, a Senhora D. Palmira/Palmirinha, de quem guardo gratas recordações, bem como de uma ou outra colega que ainda hoje reconheço.

O local para a Escola Primária que frequentei foi criado em 1930, na então Avenida Boa-Vista, a norte.

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Escola Primária, no r/ch, 1948
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Chegado o final do ano lectivo de 1950-51, o exame da 3ª classe estava à porta. O meu primeiro exame. E onde fazê-lo? Tinha de ser na Escola da Gafanha da Encarnação.

Sempre que lá passo, me lembro.

Claro, tínhamos que ir de barca, à vara, tão calmo estava o dia de Junho, e, a pé, até à escola. Vestido novo… toda enfeitada.

Uma nova escola, novos professores, novo ambiente…algum nervosismo.

O texto que me saiu em sorte foi “A libelinha e as folhas de nenúfar”. Correu bem e, no final, bom resultado.

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Escola da Gafanha da Encarnação em 1959
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Voltámos. A minha Mãe e Avó esperavam-me…com ansiedade. A sua menina a chegar do primeiro exame… e de barca!!! Quem se gaba do mesmo?

Um pequeno percalço, no regresso: escorregou-me um lápis novinho em folha, costado abaixo e enfiou-se debaixo dos pesadões paneiros da embarcação.

Por mais que pedisse, lamuriosa, ao barqueiro, ele não se compadeceu da minha mágoa. Será que um insignificante lápis merecia o trabalhão de levantar um ou dois paneiros da grande barca?... Lá ficou para sempre, mas não me esqueci…

O que interessava é que estava na 4ª classe, com as férias à porta…

Hoje, para mim, a Costa Nova não tem os mesmos encantos. A idade não perdoa e já não vou ao mar, nem lá tomo banho, não ando na ria, porque não tenho nenhuma embarcação, nem a barca para me atravessar para a “Bruxa”. Como já não ando de bicicleta por causa de algum desequilíbrio, não posso aproveitar as ciclovias. E sinto falta de um espaço em que haja um contacto directo com a ria/água, onde ao menos se possam molhar os pés. Usufruo da minha varanda, uma paisagem idêntica e sempre nostálgica, com várias mutações, consoante o tempo e a hora do dia, com a ria mais ao fundo, trocada por relvado amarelecido. Além do mais, às vezes, estou à varanda, uma tarde, em que não vejo meia dúzia de pessoas conhecidas e, essa constatação, é a lei da vida, tem tendência a aumentar…

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Ílhavo, 20 de Junho de 2023

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Ana Maria Lopes

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segunda-feira, 12 de junho de 2023

Afundou-se o vapor "Catalina"

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A nossa terra foi em determinadas épocas, e os primeiros anos da década de 40 foram uma delas, assolada por terríveis naufrágios que deixaram casas com pobres famílias na orfandade. Mais morte… por Ílhavo, em consequência de naufrágios? É mesmo o que queremos dizer.

Perante uma notícia vaga, vinda de St. Jonh’s da Terra Nova sobre o desaparecimento do vapor “Catalina”, reinou a tristeza, a comoção e a ansiedade, nesta nossa vila maruja – relata O Ilhavense de 1 de Fevereiro de 1942. O brutal acidente do Maria da Glória, do Delães, em 1942, do Santa Irene, do Pádua, em 1943, e tantos mais, encheram páginas dos jornais.

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CATALINA
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A tripulação do “Catalina” era de 18 homens, dos quais, dez eram ilhavenses, a saber:

José Fernandes Matias, imediato, João Nunes dos Santos (o Silveira), piloto, Manuel Pereira Lamarão, contramestre, Tomé dos Santos Panela (o Romeiro), Manuel São Marcos, Luís Francisco da Madalena, António Ferreira Carrapichano, marinheiros e Ângelo Ferreira, ajudante de cozinheiro e João Francisco Bichão, moço de câmara.

O “Catalina” tinha saído do Porto para a Terra Nova, onde ia buscar bacalhau frescal. O seu comandante, nosso conterrâneo, Sr. José Francisco Bichão, adoecera, tendo recolhido a um hospital local. O imediato, José Fernandes Matias (o Cageira) ocupou o comando do navio, tendo saído de Fortune Bay a 14 de Janeiro – não mais houve notícia dos nautas e seu navio. Temporal, icebergs, consequências da guerra?

O “Catalina”, juntamente com o “Ourém”, pertenciam a uma empresa de navegação com sede no Porto, C. A. Moreira & Cª., Lda., utilizados no serviço comercial, com destino à Terra Nova, Islândia e Groenlândia. Paralelamente, escalavam portos no norte da Europa com eventuais viagens para Cuba, assegurando o transporte de açúcar, para os portos nacionais.

Ex-Kilkeel, ex-Falconer, o “Catalina” tinha um comprimento fora a fora de 55, 50 metros, 9,08 de boca e 4, 70 metros, de pontal. Eram muito raras, senão inexistentes, fotos do “Catalina”. Chegaram-nos às mãos (via Canadá) as duas que publico.

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CATALINA
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Fortaleceu-me mais o desejo de postar a notícia de há 80 anos, dando-lhe uma nova vida (ou morte), já que tanto de trágico teve a ver com Ílhavo.

Em site, muito mais tardio, é evidente, mas fiável, tivemos conhecimento de que o navio fora torpedeado na posição 47º 15’N| 52º 15 ‘W pelo submarino alemão o U-203, em 15 de Janeiro de 1942, quando de viagem de Fortune Bay para St. John’s na Terra Nova. Não houve sobreviventes.

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Ílhavo, 12 de Junho de 2013

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Ana Maria Lopes

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sábado, 10 de junho de 2023

Lembrando Joaquim Godinho "Farelo"

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Nascido em 1936, em Pardilhó, Joaquim Esteves Godinho, o Farelo, foi, na sua juventude, aprendiz de carpintaria naval do Mestre António Lavoura, em Pardilhó.

Conheci-o pelos anos 90 do século passado e troquei com ele, algumas impressões, na portaria de entrada de sua casa, onde tinha alguns moldes de embarcações tradicionais. Embora acamado, agora, mas muito lúcido, completará 87 anos em Outubro.

Como o Mestre Lavoura não era perito na arte de decoração, o Joaquim Farelo, com alguma habilidade e brejeirice, dava para desenrascar a pintura de algum barco moliceiro.

Entretanto, com uma arte muito característica, foi pintando alguns painéis, por conta própria.

Relativamente fáceis de identificar, dado o seu cromatismo intenso, a sua ingenuidade maliciosa, e o seu analfabetismo, não há nada como apreciar alguns, que tive o prazer de fotografar, por uma ou outra ribeira da zona norte da ria, ou presentes, no Canal de Aveiro, no fim de Outubro de 1996.

Ei-los:

MESTRE AGOSTINHO TAVARES
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QUE LINDA FRANGA EU ENCONTREI
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EU SOU O MENSAGEIRO DA PAZ
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NÃO ME TOQUES NA BICHANA
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A RAINHA DA RIBEIRA DA ALDEIA
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MAS QUE GRANDE PEIXÃO

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PASSAIS A CHEIRAR

SE TE APANHO ENFIOTA

PENSAR ERA ANTES

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SE AVER PERDÃO PERDOAME

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PEIXE DESTE É RARO ENGATAR

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TAMBÉM ANDAS AO CHEIRO
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HOIJE NÃO QUE LEVUA INXADA
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REZAI PELOS INOCENTES
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SÓ GOSTO DE HOMEM VAIDOSO e outros
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Ílhavo, 10 de Junho de 2023

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Ana Maria Lopes

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