-
MAR OCEANO: legado de Mário Ruivo
Ontem, 20 de Maio, integrada no programa do Dia dos Museus, abriu a exposição MAR OCEANO: legado de Mário Ruivo, no MMI. Entre outros, há um agradecimento sentido que quero deixar a Mário Ruivo. Foi a escrita do prefácio ao livro “Faina Maior – A pesca do bacalhau nos Mares da Terra Nova”, editado pela Quetzal Editores, em Junho de 1996, que transcrevo:
-
Quando hoje se fala de pesca, raramente se faz referência aos
aspectos humanos desta actividade. Mais do que faina no mar, a atenção
concentra-se nos conflitos que lhe estão associados, aos quais de tempos a
tempos alude a comunicação social. A pesca aparece, assim, despersonalizada.
Os pescadores só ocasionalmente surgem nos écrans de televisão ou nas páginas dos jornais, no momento de grandes
tragédias, com fundo de temporal e vaga alta. Mostram-nos mulheres a chorar na
praia e entidades oficiais fazendo um discurso de circunstância. Recorda-se,
então, que se trata de uma profissão de risco, que é preciso modernizar o
sector e garantir a segurança das tripulações. Relembra-se a tradição marítima
de Portugal. Os mais cultos citam Raul Brandão.
Daí o interesse deste livro, bem documentado, que nos oferece
uma breve história e um panorama vivo e humanizado da pesca do bacalhau
enriquecido por recordações e memórias de quem por lá andou. As fotografias, a
preto e branco – ainda com alma – ajudam a recriar o “mito” e a “dureza” da
faina maior. Vida tão dura e em condições tão ingratas que os mancebos que se
matriculavam naquela pesca escapavam ao serviço militar.
Um mito até há poucas décadas profundamente enraizado no
imaginário colectivo, cotejando o das navegações e que contribuiu para
alimentar a ideia, já um tanto esbatida, que somos possuídos pelo “delírio das
coisas marítimas” e um povo profundamente marcado pelas relações com o mar.
A leitura destas páginas faz-me voltar quarenta anos atrás, à
época em que me ocupei do estudo das pescarias portuguesas no Noroeste do
Atlântico, partilhando, todos os anos, meses a fio, a vida a bordo dos lugres,
navios-motores e num ou outro arrastão, nos bancos da Terra Nova, nas costas do
Labrador e na Gronelândia, até para além do círculo polar árctico.
Do fundo da memória, chegam-me recordações dos capitães que
me acolheram nos seus navios, dos pescadores que pacientemente e com
curiosidade me ajudaram nos meus trabalhos, das relações e amizades
estabelecidas. Estou a ver o Capitão Sílvio Ramalheira, na cabine de navegação
do «Capitão João Vilarinho», escutando com condescendente simpatia as minhas
divagações sobre os otólitos e a idade dos bacalhaus e comentando com
pragmatismo o que pensava da investigação pesqueira! Pergunto-me o que será
feito do João Palão – considerado o melhor profissional da pesca à linha – que,
nas horas vagas, fazia ofício de barbeiro e me cortava o cabelo, no convés,
sentado num caixote, antes de embarcar em St. John’s. Recordo a azáfama dos
dias de grande pesca, a angústia partilhada quando havia nevoeiro e estavam
ainda homens no mar, com o “fog-horn” a roncar, como contam os autores.
Relembro os termos preciosos que faziam parte do quotidiano a bordo, para mim tão
misteriosos e poéticos, com os quais me ia lentamente familiarizando:
“alantas”, “gatos”,”locas”. E até o “alfabuche” – uma medida de sal – que
durante muito tempo pensei ser de origem árabe (por começar por “al”) e que não
era mais do que “half bush”aportuguesado.
Vejo-me num dia agreste e cinzento, no cemitério de Godthaab,
onde tínhamos ido enterrar um pescador, ao lado da figura severa do Comandante
Tavares de Almeida, que me iniciou nestas lides a bordo do «Gil Eannes». Para
onde vai o «Gil Eannes?», titulava, há dias, o jornal “Público”. “O Gil Eannes,
que serviu de navio-hospital da frota da Terra Nova, fez 41 anos no passado dia
19 que foi lançado ao mar. Nos dias de glória, o seu hospital, por exemplo,
dava assistência a 70 navios e a cerca de 7 000 pessoas. Atracado, há anos, na
Rocha de Conde de Óbidos em Lisboa”. Onde, com nostalgia, o vi, há meses,
quando passeava na doca. O prestimoso navio branco de assistência à frota,
agora amarrado ao cais, gasto pelo tempo e coberto de ferrugem.
Nesta obra, a pesca do bacalhau é-nos apresentada quando
ocupava ainda uma posição dominante nas actividades marítimas nacionais. A
sobrevivência da nossa frota de pesca à linha face à concorrência de outros
países que praticavam a pesca do bacalhau, utilizando sobretudo e cada vez mais
os arrastões, resultou em grande parte da necessidade de ganhar a vida dos
pescadores e do regime corporativo e de proteccionismo económico que dominava o
sector.
Começava, então, a ser evidente, para quem analisasse
criticamente a situação, que a pesca longínqua portuguesa perdia pouco a pouco
posição face à concorrência das frotas modernas, bem equipadas, com adequado
científico, técnico e diplomático, inseridas em economias dinâmicas e
sociedades abertas.
Quando regressei a Portugal, depois do 25 de Abril, este
processo tinha entrado já numa fase avançada que se acelerou com o novo direito
do mar e a criação de zonas económicas exclusivas sob jurisdição de Estados
costeiros – designadamente em águas tradicionalmente frequentadas pelos
pescadores portugueses – onde agora apenas podíamos invocar direitos históricos
para defender o acesso e negociar quotas. Em 1979, numa nota publicada no
balanço do ano do “Expresso” considerei, face à incoerência da política de
pescas nacional, que a decadência da nossa pesca longínqua era irreversível. As
recentes notícias sobre a “guerra da palmeta” representam, simbolicamente, o
fim de um ciclo.
O livro de Ana Maria Lopes e Francisco Marques, para além do
seu valor documental constitui uma excelente fonte de referências para quem, no
futuro, pretenda aprofundar o tema na diversidade dos seus aspectos técnicos,
etnográficos e culturais do que foi uma importante actividade portuguesa. Ao
valorizar culturalmente a “grande faina” e ao recriar uma ligação sentimental à
actividade marítima, está também a contribuir para estimular a reflexão sobre o
almejado “regresso de Portugal ao Mar”, à luz de novas perspectivas. Um tal
objectivo nacional requer uma crescente informação e sensibilização da opinião
pública, sobretudo quando se reconhece, hoje, à escala mundial, que os Oceanos
constituem a última fronteira do planeta e um espaço vital para o futuro da
Humanidade. Esta é, de resto, uma das motivações subjacentes à realização, em
Lisboa, da Expo 98 e à designação pelas Nações Unidas, por iniciativa de
Portugal, de 1998 como Ano Internacional dos Oceanos.
Ílhavo,
21 de Maio de 2023
Ana Maria Lopes
-
Sem comentários:
Enviar um comentário