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Hoje,
em dia, nas preocupações gastronómicas, muito se fala em pratos de bacalhau, na
confecção de petiscos com os seus derivados, na qualidade da famosa chora de bordo e outros. Comia-se bem?
Comia-se mal? Sempre questões postas por jornalistas actuais, em várias
entrevistas.
Aquando
da montagem da primeira Faina Maior, em Novembro de 1992,
não houve tanto assim, uma preocupação gastronómica, mas sim a procura das
peças usadas, antigamente, a bordo, bem como a sua identificação e serventia.
Depois de percorrermos as antigas empresas, desde Viana do Castelo ao Barreiro,
que para lá tinham destas peças atiradas, foi, para nós, uma satisfação e um
prazer, ao encontrá-las. A este propósito, outras questões vieram a lume, em
depoimentos prestados pelos antigos cozinheiros, que nos apoiarem e trabalharam
connosco:
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António Ferreira Gordo (1921-1997), ajudante de cozinha
e cozinheiro no Vaz, Maria Carlota,
Elizabeth, Senhora da Boa Viagem e
Rio Alfusfueiro.
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João Arlindo Barreirinha Vagos (1927-2011), moço de câmara, ajudante de cozinha
e cozinheiro no Argus, Hortense e São Gabriel.
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João Diogo Ferreira Labrincha (n. em 1921) moço de câmara, ajudante de cozinha
e cozinheiro no Alcion, Paços de
Brandão, Infante de Sagres e Vaz.
O
primeiro painel expositivo a ficar pronto e a ser ensaiado, em Aveiro, na Expomar 92, a 21 de Outubro de 1992, foi
a cozinha de bordo de navio tipo Hortense
(1930) para 42 tripulantes, feita segundo os planos originais, com os materiais
e técnicas então usadas na carpintaria naval.
Ficava
integrada no próprio rancho, espaço destinado a beliches, onde dormiam os
homens, e, onde, à mesa, eram servidas as refeições. Estas cozinhas integradas
no rancho situavam-se na parte posterior deste, à amurada do navio. Em épocas
mais recentes, passaram a ser isoladas dos beliches e chegaram até mesmo a ser
mudadas para plano superior, o convés. Junto à antepara da ré, ficava o fogão,
peça fulcral no funcionamento da cozinha. Grande fogão, funcionava a carvão de
pedra, tendo sofrido uma adaptação, por volta dos anos 50, para gasóleo,
combustível muito mais prático e limpo. Este era o original do navio Creoula (1937).
Com
fornalha a meio, um forno de cada lado para o pão, e tanque de aquecimento de
água doce, ainda suportava sobre o seu tampo, com oito discos, as grandes
louças, peadas, para evitar os efeitos do balanço – peias, de ferro, que
encaixavam ema apoios com sulcos apropriados.
O
fogão, aceso com uns cavaquitos, e um bocadinho de petróleo, praticamente, na
pesca, nunca se apagava – morria, mas
quando o cozinheiro se levantava, dava-lhe uma mexedela com o ferro do fogão,
punha-lhe mais carvão e estava sempre a andar. A fornalha, interiormente,
era forrada a tijolo refractário, que além de isolar o ferro, tinha a vantagem
de isolar o calor.
Pelo
lado de bombordo, situavam-se umas pequenas tulhas de madeira, com tampa, onde
eram colocados mais à mão do cozinheiro os alimentos que mais se gastavam –
arroz, feijão encarnado, açúcar e grão.
Sobre
as tulhas, havia prateleiras destinadas a louças menores, para o serviço de
refeições. As maiores, as grandes bailas, tachos, cafeteiras, chaleiras,
suspendiam-se em ganchos fixos nos vaus – o cozinheiro chegava a tocar-lhes com
a cabeça. Ainda sobre as tulhas e suspensa dos vaus, uma rede de galinheiro
facilitava a conservação das cebolas, ao longo dos meses.
Também
a bombordo, um pequeno tanque de água doce, de zinco, servido por uma bomba de
relógio, que ligava aos tanques de água dispostos no porão, sob o pavimento da
cozinha.
A
carvoeira, situada mais ou menos a meio navio, a estibordo do fogão, como que
delimitando a cozinha, destinava-se a receber o carvão para abastecimento, que
era guardado no pique do carvão, donde era trazido em baldes de boça e, mais
tardiamente, em cestos de trol.
Num
rudimentar lava-louças móvel, de zinco, suspenso no fogão, lavava-se a louça em
água do mar, aquecida, por vezes, com auxílio de uma solução de potassa.
Do
cozinheiro e ajudante dependia todo o “combustível” da tripulação, trabalho
nada fácil, exaustivo, preocupante, mas rotineiro.
A
alimentação a bordo, deficiente em frutas e verduras (que, por não haver
frigorífico se gastavam nos primeiros dias após a largada), era pouco diversificada,
embora existissem algumas diferenças apreciáveis entre as refeições de viagem e
na pesca e as refeições da proa (para os pescadores) e as da ré (para os
oficiais).
Em
viagem, as refeições eram três: o almoço, a partir das sete e meia da manhã, o
jantar, a partir das onze e meia, e a ceia, a partir das seis da tarde, sempre
servidas em dois turnos.
O
almoço, de garfo, servido no rancho, variava entre papas de farinha de trigo,
açorda, papas de feijão, feijão guisado e feijão assado no forno.
O
jantar constava de sopa (de feijão branco, vermelho ou grão e massa ou arroz,
temperada com toucinho bem alto) e peixe cozido (quase sempre bacalhau seco,
que ia de terra, ou pescada, besugo, pargo, amanhados e salgados pelos
marinheiros dois dias antes de sair), só
por só, ou acompanhados de batatas.
À
ceia, voltavam a comer peixe acompanhado de grão-de-bico ou feijão frade.
E
o pão de bordo? Feito todos os dias, amassado com água salgada, o grande pão de
forma, às fatias, era comido rijo, para se comer menos; só o pequenino, o papo
seco, era servido ao meio-dia.
Os
dias iam passando e chegava-se ao pesqueiro; aí o horário das refeições estava
condicionado à pesca. O almoço, sensivelmente o mesmo do de viagem, podia
oscilar entre as quatro da manhã – hora dos “louvados” – e as nove ou dez
horas, se a safra do dia anterior tivesse sido muito boa e a escala se tivesse
prolongado até muito tarde.
A
refeição volante que o pescador levava no foquim para o pesqueiro
era constituída por postas de peixe frito, fatias de pão de forma barradas com
margarina e azeitonas, à descrição do homem do dóri, que preparava o seu
próprio farnel com os alimentos que o cozinheiro lhe apresentava. O café,
conservado em garrafa térmica, ia aquecendo o pescador.
Antes
da escala, o jantar, com sopa e peixe cozido – agora o bacalhau fresco, miúdo,
pescado e escolhido para o efeito.
Depois
da escala, a famosa “chora”, cozinhada com caras de bacalhau também fresco.
Todas
as refeições eram acompanhadas por chá ou café que se fazia diariamente a
bordo, sendo o vinho um costume mais tardiamente introduzido e com restrições.
Pequenas
regalias distinguiam a quinta-feira e o domingo: o queque ao almoço e a carne
guisada ao jantar, a carne salgada que vinha da Argentina, fervida três vezes
em água salgada para perder o sal – carne salcochada.
De
regresso, o esquema das refeições de regresso era o mesmo do da ida com maior
ou menor recurso a certos géneros alimentícios, o que dependia do tempo
despendido na pesca. O peixe agora comido era o bacalhau salgado para esse
efeito, nos últimos dias de pesca.
Os
pecadores também tinham, de vez em quando, os seus pitéus: – toninha guisada,
cozida ou em bife, apanhada na ida, por altura das ilhas, mantendo-se, por
norma, o rabo da toninha pregado no pau da bujarrona, até à entrada;
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a tartaruga, igualmente apanhada na ida, era também uma carne muito apreciada,
porque idêntica à da galinha, mas com sabor a peixe;
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a lula primordialmente servia para isca, mas quando era excedentária, com
autorização do capitão, também se cozinhava;
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da cagarra, ave marinha, se também com abundância, o pescador aproveitava as
coxas e o peito, para assar; quando os ia buscar ao forno, por vezes, já lá não
os encontrava, tão cobiçados eram.
A
comida da ré, porque em muito menor quantidade era sempre mais bem cuidada:
temperos mais apurados, batatas descascadinhas, pão e peixe frito sempre
frescos. Vinho ao domingo, queques pequeninos, eram estes os chamados “mimos da
ré”.
Os
horários das refeições, em tempo de pesca também eram mais respeitados, porque
os oficiais não saíam para o mar como os homens do dóri.
Dos
derivados do bacalhau, que não eram usados à descrição, o cozinheiro preparava
uns petiscos que, ainda hoje, os oficiais recordam: caldeirada de espinhas, caras
fritas de escabeche, dobrada de samos, arroz de corações, buchos de bacalhau
guisados.
Havia
no chão uma panela de três pés destinada a derreter o chumbo para a feitura de
singas e outras chumbadas. O chamado sino do rancho destinava-se a dar os
“louvados” e a chamar o pessoal para as refeições.
Funcionava,
assim, a cozinha de bordo.
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Ílhavo, 21 de Fevereiro de 2023
Ana Maria Lopes
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