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As
causas do sinistro – Uma tripulação inteira em riscos de perder a vida – O
cemitério dos navios – Horas de tortura e de fome – Uma saudade e um sonho –
Coragem, marinheiros!
Ao respigar Ilhavenses antigos, por outro assunto, passou-me pelas mãos no de 25/8/1929, esta entrevista que me interessou, ao Capitão do «Ilhavense I».
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Catando-a, (…) Homem experimentado nas lides do mar, o nosso amigo Sr. João André Alão era o capitão, há já alguns anos, do lugre «Ilhavense I», naufragado no dia 15 de Julho passado nos Bancos da Terra Nova.
Chegado a Ílhavo na terça-feira pretérita, era nosso dever ouvi-lo sobre o sinistro que causou a perda do barco do seu comando que em 11 de maio havia deixado o porto de Lisboa, impelido pela leve brisa que no tope dos seus mastros cantava a canção dolente que aprendera ao roçar no dorso das vagas – brisa cantante e benéfica a cujo sopro adormecem os nautas portugueses, os nautas da nossa terra, cheiinhos de sonhos e de saudades, sonhos que são uma vida, saudades que são consolo para as suas almas de lutadores nevróticos.
À sua casinha da rua Direita nos dirigimos, pois, na manhã escaldante de 5ª feira.
E, em frente do arrojado marinheiro, de
rosto tisnado e magrizela, ali nos dispusemos à entrevista, rápida,
instantânea:
– Em que dia haviam chegado ao Banco?
– No dia 12 de Junho.
– Tinham, portanto…
– Já tínhamos perto de 500 quintais a
bordo.
– E porque levantaram ferro?
– Porque o peixe falhou.
– A que atribui o sinistro?
– A névoa cerrada que apareceu cerca das
dezanove horas e a um desvio de agulha, duas coisas frequentíssimas naquelas
paragens.
– Houve falta de precauções?
– Não senhor; flutuávamos de acordo com as
exigências de flutuação em tais casos.
– Queira contar-nos o que foi esse momento
tremendo?
– Devia ser uma hora da madrugada quando
fomos surpreendidos pelos gritos das vigias, anunciando terra na proa. Sentindo
o perigo iminente, imediatamente mandei arribar. O barco rodou, mas a popa
bateu no rochedo. Mandei largar ferro. O navio estava encalhado de popa à proa,
rebentando grandes mares no convés.
– Havia possibilidades de salvar o navio?
– Não. Só havia a possibilidade de salvar
a tripulação, que ali estava toda em riscos de perder a vida. Por isso, mandei
proceder ao imediato desembarque.
– Que se fez…?
– Com grandes sacrifícios e enormes
dificuldades. Foram arriados doze dóris, em que se recolheram todos os
tripulantes, tendo eu deixado o navio somente depois de verificar que mais
ninguém estava a bordo.
– Houve salvados?
– Quando saltei para o meu dóri, levava
comigo todos os livros e documentos de bordo, incluindo dois diários do piloto,
mas o meu dóri foi ao fundo, sendo eu salvo nessa ocasião, por outro dóri que
veio em meu auxílio, perdendo-se os livros e os documentos.
– Depois…
– Às três horas da manhã, como visse que
já nada se podia fazer, para salvamento do navio, mandei remar para terra, em busca
de local para desembarque
– Que foi…?
– Perto de uma povoação chamada Saint Shotts.
– Não voltaram ao navio?
– Voltámos por um cabo de vaivém que se
estabeleceu de terra para o barco.
– E fizeram, então, alguns salvados?
– Apenas alguma roupa dos tripulantes e
alguns objectos de insignificante valor, pois o navio já estava raso de água e
impossibilitava, em absoluto, os trabalhos de salvação. Vendo que nada mais se
podia ali fazer, voltámos a terra e fomos, então, em busca das autoridades. De
Saint Shotts, comuniquei para Trepassey, povoação distante daquela, cerca de
vinte milhas. Telegrafou-se para o cônsul de Portugal em Saint John’s, Sr. João
José Denis.
– O local onde encalharam é de boa
navegação?
– Não. Até lhe chamam o cemitério dos
navios. Dias antes de nós, naufragou um vapor inglês, que ainda lá vimos,
morrendo toda a tripulação. Contam-se já perto de vinte, os barcos encalhados.
– Passaram muitas torturas?
– Muitas torturas e muita fome. Saint
Shotts é uma povoação pequena, com cerca de 20 habitantes e onde não há
recursos de espécie alguma. Havia de ser uma hora da tarde quando, extenuados,
nos desjejuámos com uma chávena de chá.
– As autoridades fizeram-se demorar?
– Só passadas algumas horas depois que
telegrafei é que chegaram ao local do sinistro o Juiz de Trepassey, o oficial
da Alfândega e um polícia.
– E o nosso cônsul?
– Telegrafou imediatamente ao Juiz de
Trepassey, pedindo que nos fossem dados imediatos socorros. Também o nosso
conterrâneo Sr. Copérnico da Rocha* foi incansável e dispôs tudo para que nada
nos faltasse. Fomos transportados para Trepassey em pequenos carros, por
caminhos perigosíssimos, tendo ficado no local do naufrágio um polícia de
guarda ao navio e aos salvados. De chegada a Trepassey, também lá estava o
cônsul de Saint Jonh’s.
– Que providências tomou o cônsul?
– Averiguados todos os detalhes do
naufrágio, e informado de que nada mais se podia fazer e vendo que os
marinheiros estavam passando as piores privações, dormindo no soalho de uma
sala e cheios de cansaço e fome e tendo ido ao local do sinistro comigo, com o
piloto e autoridades verificaram a situação e posição do navio, ordenou, então,
a nossa partida para Saint John’s, onde embarcámos a bordo do paquete «Nova
Scotia» que nos transportou ao Havre, tomando neste ponto o vapor «Pancras»,
que nos desembarcou em Leixões.
– Vieram todos?
– Vieram 23 homens. Os restantes 5, em
cujo número se contam o piloto, Sr. José Fernandes Matias de Melo e o contramestre
Sr. Joaquim Fernandes Serrão, devem estar a chegar a bordo do vapor «Catalina»
– Quantos homens eram de Ílhavo?
– Seis. E outros tantos da Gafanha. Os
restantes eram da Nazaré, da Figueira e do Algarve.
E o nosso entrevistado, sem dar mostras de
aborrecimentos pelas nossas constantes e contínuas interrogações, cerrou neste
momento os olhos.
Calámo-nos. Naquele instante, devia passar-lhe
pela mente a recordação de um sonho feito saudade, evocando as horas
tormentosas do naufrágio em que correndo da proa à popa, gritava aos seus
homens:
– Coragem, marinheiros!
Antes fosse um sonho!
Mas, infelizmente, a perda do «Ilhavense
I» fora uma dura e cruel realidade!
Degustem
esta entrevista levada a cabo há 92 anos, tal como eu a saboreei, apesar de
todo o seu dramatismo.
*Ainda conheci o Sr. Copérnico Rocha e sua Esposa, quando vinha a Ílhavo, irmão de Conceição e Rosa Rocha, tio de Maria da Conceição Rocha Mano e de José (Zeca) Mano.
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Ílhavo, 08 de Outubro de 2021
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Ana Maria Lopes
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