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Dia 22 de Junho
Como
é hábito, lá fomos eu e a Etelvina, passar uma tardada, às redondezas do
Estaleiro /Museu da Torreira que o Zé Rito coordena, que, neste tempo, de
pré-regata da ria, reconstrói moliceiros,
edifica todos os restauros, mazelas, maleitas, podridões, bem como repõe e
recompõe fundos, bicas e tudo o que
esteja a perigar a segurança da embarcação.
Mas,
nem eu nem a ria, nem os moliceiros
estávamos na melhor forma. Eu, cansada, como ando, ultimamente, até tropecei
numa corda que fixava uma bateira à
areia e catrapus…, chão comigo. Vá lá, soube cair, não me estraguei a mim, nem
à máquina. O mesmo não aconteceu com o pintor, o Zé Manel Oliveira, que andava
numa azáfama, dividido entre a pintura de três moliceiros, com um pé engessado enfiado num saco plástico e apoiado
em duas canadianas, quando se deslocava. Que tal? Quem gosta, gosta mesmo e faz
os possíveis e os impossíveis. O pai ajudava-o.
A
ria, em baixa-mar, estava lamacenta, enlodada, envolta num céu acinzentado,
pingado e morrinhado, que não lhe incutia nenhum brilho. Antes pelo contrário.
Os
moliceiros, coitados – só quatro!
Participarão todos na regata? Não se sabe… ou não se quer dizer. Outros se lhe
juntarão? Não se sabe de certeza…. A ria e os seus arrais têm os seus
segredos…ai têm, têm.
Garanto
que não faltarão, o Marco Silva com
o seu moliceiro debutante, o Zé Rito, aguerrido e despachado, com toda
a sua genica e o Ré Rebeço, no A. Rendeiro, com quem conversei, homem
com alguma idade e que me confessou, mais uma vez, que eram a ria, o moliceiro e duas bateiras, que lhe davam vida. Caso contrário, residiria com um
filho, no Canadá.
Vamos
lá entender estas paixões…Lá que as há, há… São homens da ria.
«TANTA PASSARADA À SOLTA E EU A FAZER GAIOLAS!»
Depois
de descansar um pouco, enlevada num painel brejeiro, já acabado, a Etelvina
segredou-me que tinha uma surpresa para mim. O que seria? Um pescador, de meia-idade,
dentro de uma caçadeira, todo
enredado na limpeza da sua arte,
queria reconhecer uma senhora que, há anos, tinha feito um livro, que ele
guardava religiosamente, comprado na Expo 98, onde estava fotografado. Um tal Belo – sussurrava a Etelvina.
O
nome não me dizia nada, mas, chegada ao pé dele, sem nos reconhecermos,
perguntei-lhe outro nome – Salvador.
Ah!, o Salvador Belo, que pintou o
barco do Manuel Cachaço, das Quintas, reconstruído na sua própria eira pela
equipa habitual de reconstrução do mestre M. Raimundo, já desaparecido.
Manuel Cachaço, homem com características especiais – trabalhador, mas
também muito reinadio – escolheu uns motivos de painéis, especiais, relativos
ao rancho da Marinha de Ovar – Noivos de Ovar de 1850, Os Varinos de Ovar de
1920, Os Romeiros de Ovar de 1920 e Os Ceifeiros de Ovar de 1900.
Aqui
está uma imagem que exemplifica. E encantadora que ela é.
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Painel de Salvador Belo. 1986
Haviam
desaparecido quase simultaneamente dois dos pintores da ria, o célebre Ti Avelino
Marcelo na sua singeleza, ingenuidade, também com o um toque malicioso a seu jeito,
e, prematuramente, o famoso Jacinto (Jacintro) Vieira da Silva de alcunha,
Lavadeiro.
O
jovem Salvador Belo, ali, por
1986/87, veio desenrascar as pinturas do moliceiro
do Manuel Cachaço. Parece que estou a ver a cena. Foi fascinante o empenho de
toda aquela gente e o nosso. Um painel novo que surgisse era a melhor prenda
que nos podiam oferecer.
E,
hoje, o reencontro entre mim e o Salvador Belo foi entusiasmante. O livro, seus
registos e imagens uniram-nos e fizeram-nos recordar tudo, tudo, tão certinho,
que até dava gosto.
Um
dos poucos barcos que também decorou, à beira-ria, um dos primeiros de costado
verde, foi um de que também recordou a legenda:
REI.
DA. VARÉLA.
Virei
os ficheiros do avesso, mas o Rei da
Varela tinha de cá estar. Ei-lo:
REI.
DA. VARÉLA. 1987
E
o Salvador a pintar. Apenas se dedicou dois anos a esta arte de «pintor de
domingo». Outros começaram a surgir e um deles ainda se mantém, hoje, com muito
gosto.
A ria como fundo…1987
Conversámos,
palrámos, tagarelámos…o nosso reencontro foi uma das satisfações desse nosso
dia. Ambos, claro, mais velhos, uns 30 anos.
Eu,
por cá continuo entre barcos, enquanto me deixar a saúde, a organização, o engenho e a arte.
Hoje,
o Salvador, pescador da Torreira, é
proprietário de uma zelada caçadeira,
onde cuidadosamente limpava uma outra arte
– uma das redes com que trabalha, agora.
Para
finalizar, o registo do feliz encontro, gentileza da Etelvina.
Belos momentos à beira-ria em boa companhia e em vésperas da Grande Regata. É sempre um prazer este reencontro com a ria, os barcos e os homens. Conversas, riquezas culturais e muito mais trazemos no alforge. Obrigada Ana Maria pelo prazer da sua companhia.
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