domingo, 7 de junho de 2015

Apresentação de «Uma Janela para o Sal», por Senos da Fonseca

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(Cont).
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Segunda singularidade:
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Surpreendeu-me positivamente, quando me apercebi por onde queria ir a «A Janela para o Sal» …
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O livro tem uma particularidade que passará certamente despercebida ao leitor comum. É escrito no presente – como se a safra fosse hoje, ainda como se descreve.
Historicamente errado, que poderia, se levado à letra, destruir todo o trabalho. Mas perceptível.
O livro nasce, na realidade, de um convite feito à co-autora Etelvina. Levando-o a um passado já distante, um passado em que foram feitos os registos da Ana e do filho Paulo. É pois a história vista num passado, transmitida, relatada, num presente qualquer. Uma espécie de crónica real…
Não deixando de fazer a via-sacra do escoar das comedorias, ao estranger, do imoirar à botadela o léxico está presente qb. Não podia deixar de estar. Léxico imaterial rico, que foge a definições mais detalhadas. Sem perder tempo nos descritivos alongados da definição técnica, para aqui despropositada.
Assim, parece-me desde já ser possível, dizer que os três co-autores souberam conciliar e verter para obra, com conta peso e medida, cada um, de per si, os particulares atributos, individuais. Diria, com particular equilíbrio. Every one has is place... ou mais trivial Chacun  à sa place ..... E são a meu ver: o rigor da observação, registo e tratamento de Ana Maria; a beleza poética da descritiva de Etelvina Almeida (uma apaixonada das funduras da laguna e dos relevos humanos – e não humanos que a povoam); a retina selectiva de Paulo Godinho, na escolha e transferência para o duradouro, do que entreviu no momento. O resultado final, acabado de sair do forno e agora deposto em vossos regaços, é... porque foi  assim  que deliberadamente se quis,  não um trabalho  técnico mas uma sucinta monografia sobre a safra do sal na ria, apoiada numa recolha imagética e num estudo de campo, como bem esclarecem  os autores. Uma obra diferente que acrescenta frescura ao tema e enaltece o homem, sublinham, como que a dizer-nos ao que vieram... Confirmamo-lo em absoluto. Final conseguido.
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E assim cada imagem que fixa o humano na paisagem circundante, deixa de ser apenas entusiasmante para uma apreciação sensorial do olhar deslumbrado. Logo em paralelo, reforçando-a, sublinhando-a ou matrizando-a, corre um dorido, poético e choroso texto. Que a explica, reforça e lhe recupera os pormenores do milagre que permite à natureza imitar o milagre isabelino, ao perguntar à Ria – o que trazes no teu seio?... e esta a responder: – flores de Sal, Senhor.
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A natureza ofereceu o meio.
Ao princípio pareceu molhado demais para ser acolhedor. E de noite sob o prateado de uma lua cheia embolada, parecia não haver sequer fantasma, nele a bulir. E de som apenas se ouvia, de onde a onde, um choro de pio perdido de gaivota grazina, chorando na margem a sua desdita.
Mas logo o homem se lhe atirou afadigado, agradecendo a dádiva. Rapou de um imaginativo compasso, sobraçou no olhar esbelta régua, e logo se atirou a riscar as águas azuis, metendo-a em viveiros, algibés, caldeiras, talhos e cabeceiras, onde se espreguiçam num azul soluçante que, inquietado pela aragem, cintila, parecendo invadido por milhões de cus de lume incendiados pela torreira.
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Essa figura humana, o primeiro da cronologia humana lagunar, é o marnoto. O decano das labutas lagunares, duradouras. Aquela que serviu de plinto ao Homem que, atraído pelas promessas entrevistas, se alapou, célere, nas suas margens. Abrigado em ocres tugúrios das ruindades da natureza agreste, que foram brotando das lamas secas, enegrecidas, depressa tornadas terras de viço.
Dele bem se poderá dizer: ao princípio era o marnoto!!!
E assim começaria a história até que a página foi encerrada, já lá vão quase três boas dezenas de anos.
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Meus senhores Minhas senhoras: Amigos
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O presente trabalho é guarida segura para memória futura. Para lembrar o arquétipo humano, através do qual os deuses imateriais concederam a feitura do sal, «nativo e factício», como o designou, Plínio «O Velho». Quando no séc. II dC, por estas bandas deambulou, em trabalho de campo, a recolher elementos para a sua «História Natural».
E the last but not the least: uma outra singularidade…
As autoras não irão certamente corar… Falamos de janelas e eu espreitei. E o que vi?
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Este livro feito por duas mulheres que qualquer leitura permitirá dizer-se «muito interessantes», tem, a dada altura, uns laivos de erotismo. Sugerido nas páginas em que esboça o perfil do moço lagunar. Mostrado de calções, sem outro sudário que não seja a pele, a cobri-lo. Ei-lo desnudo qb, e logo as autoras parecem deslumbradas:
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Quase nu,… eis o moço do Sal, de corpo esbelto e pele bronzeada. Os seus músculos retesam ao longo da íngreme subida...elegante e sereno no caminhar... o corpo moldado à canastra.
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E continuam as autoras na luxuosa descrição:
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Sob intenso sol esse homem musculado, exala e escorre suor e moira....que se colam sobre o peito molhado e salgado.... (a)pele dura gretada.... deixa antever longo curtir que lhe rouba anos de delicadeza... A todo o tempo ele transpira...sal.
A janela passa rapidamente a buraco de fechadura para uma espécie de cândido  voyeurismo...
E o moço de marnoto, surge na «Janela para o Sal», como um Adónis mitológico, divindade de vida-morte-renascimento, ele mesmo, aqui, mito do ciclo anual da produção do sal: a sua «afrodite» com quem escolhe(ia) conviver meses de cio salgado. Corpos de beleza masculina excelsa, talhados na perfeição dos mitos, a que a exsudação copiosa concede um brilho de virilidade entrevista...
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Meus Senhores, minhas Senhoras, Amigos:
Caros Autores:
A Ana costuma temer a severidade das minhas apreciações.
Pode aqui ficar descansada. Ela esteve certa; eu estive errado. Mas em boa verdade, a Ana esteve certa: porque acreditou e teimou levar por diante algo, onde eu não consegui ver interesse.
Voltando a António Vieira, o Sal de que a Ana queria falar é o sal da salga.
O saído de uma hipotética feitura minha, talvez não o fosse (!). O pregador (eu) quereria fazer uma coisa, mas no fim, faria outra. A cada um, o seu sal, pois…
A Ana esteve certa e feliz, porque comigo nunca esta obra atingiria o mérito que lhe reconheço.
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A estimada e estreante Etelvina, por quem nutro grande simpatia e apreço, foi the right womam, for the right job... Conferiu uma beleza poética a uma amargurada tarefa. Não é fácil...
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Bem: do Paulo Godinho, que um dia, ainda rapazito imberbe, apareceu em minha casa a vender um excelente vídeo de sua autoria (e de Rui Bela), direi que fiquei, já então, aí, na certeza que havia muito a esperar (dos dois). Mas a vida «oblige»...e o fotógrafo teve de dar lugar ao óptimo profissional, que sei o Paulo ser.
Olhe Paulo: não gosto (já!) de dar conselhos aos mais jovens. Se o pudesse fazer dizia-lhe: guarde lá para o fim, como eu fiz, tempo suficiente para trabalhar no seu hobbie. Vai ver que vai muito a tempo...
A todos os meus parabéns.
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Senos da Fonseca, 16 de Maio de 2015
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Imagens de Paulo Mendes e de Teresa Soares (assinadas)
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Ílhavo, 7 de Junho de 2015
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AML
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