A Casa dos Faróis
na Costa Nova do Prado
(Cont.)
Casa dos Faróis. Anos 70
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No primeiro andar, a maior das divisões, tão larga quanto a casa e profunda
de bem quatro ou cinco metros, era o lugar de vida e de reunião. Servia de casa
de jantar e de sala de estar. Uma janela de cada lado da porta e uma (ou duas)
a Sul deixavam entrar a luz e o Sol. À volta da mesa, se bem me lembro redonda,
as cadeiras.
Aqui começava o particularismo do mobiliário, que tentarei descrever se me
não falhar a memória. Imagine o leitor uma canastra paralelepipédica com o
fundo para cima a servir de assento. Por dentro, colocados e presos a cada
aresta, os pés eram quatro cabos de remo. Nas costas, dois remos cortados do
lado da pá, em diagonal, fixados à tampa da canastra de um lado e a uma das
faces de canastra do outro formavam as costas da cadeira.
Duas cantoneiras, réplicas exactas de popas
de moliceiros usavam-se como credências, com o assento a servir de
prateleira e, na parte de baixo, o armário para a loiça e os copos. O chão, os
tectos e os tabiques da casa toda eram de madeira encerada, de tom quente e
toque suave, quase cor de mel.
A porta, na enfiada da entrada principal dava para o corredor. Neste, ao
fundo, ficava a cozinha virada a poente, à esquerda o quarto dos miúdos onde eu
costumava ficar e a casa de banho, com as janelas a Sul. À direita, uma escada
de madeira apoiada à parede Norte, com três lanços perpendiculares uns aos
outros e balaústres esculpidos, dava acesso ao primeiro andar, onde ficavam os
outros quartos e raramente acessível à miudagem.
No «meu» quarto, a cama de pessoa e meia, era de madeira esculpida em forma
de barca estilizada. De parte e de outra, as mesas-de-cabeceira eram, nem mais
nem menos, bitáculas, também obra de exímios
marceneiros. Até hoje, tirando lá em casa, onde todos os quartos tinham este
tipo de móveis, nunca mais vi nada com que se parecessem.
Na casa de banho contígua, mas sem comunicação directa com o quarto, não
havia água canalizada, nem canos de esgoto. Chão, tabiques, tecto e portas eram
também daquela madeira bonita e quente já descrita. Um lavatório de ferro
esmaltado à antiga, encostado à parede, com o seu jarro de água e o balde para
a água suja e, no meio da divisão, um semicúpio de zinco em forma de bateira, suficientemente grande para um
adulto, era o equipamento sanitário de que me lembro. Pendurado por uma corda a
uma roldana no tecto, por cima do semicúpio,
um balde de folha com um ralo de regador para o duche. Muito bem me recordo de
uma criada trazer da cozinha dois jarros de água quente. Começava por abaixar o
balde de duche e enchê-lo de água. Feito isto, avaliava a temperatura com a
mão, içava outra vez o instrumento e prendia a ponta da corda no gancho
aparafusado no tabique. Então, já despido, entrava eu para o semicúpio e, em pé, com a ajuda da mãe,
puxava pelo cordão da válvula de água e tomava o duche quotidiano, que adorava.
Logicamente, penso que depois alguém vinha despejar a tina, mas julgo nunca o
ter visto.
Tina Campos, Alfredo, Margarida e Amélia Campos
Era na cozinha que se aquecia a água para os banhos e para o que mais fosse
preciso. Um enorme fogão de lenha, de ferro fundido, com dois fornos e, do lado
direito, aquecido pelo combustível do fogão, que se acendia de manhã e dava até
à noite, havia um reservatório de cobre com uma torneira do mesmo material,
sempre cheio de água, muitíssimo quente, designadamente para as tarefas e
necessidades culinárias. Para os banhos e duches, penso que se aquecia água em
grandes chaleiras na chapa do fogão. Dessa cozinha, onde raramente ia, é a
única coisa que me ficou.
O DJ seria um Osvaldo, de Vagos
As janelas, a Sul e a poente arejavam e deixavam passar a luz do Sol. Por
dedução, já que a memória o não registou, devia haver uma escada exterior da
cozinha para o quintal, por onde entrava e saía o pessoal, com tudo o que era
preciso para a casa e os seus moradores. Não poderia deixar de ser assim pois
não havia nenhum acesso directo da garagem (que ocupava toda a superfície do
plano térreo) para o primeiro andar, e também nunca vi passar pela porta
principal fosse o que fosse para a cozinha ou para as necessidades domésticas.
A casa mítica da minha infância foi demolida e alguém construiu no terreno,
se bem me parece com uma «fatia a menos» para alargar a rua dos Faróis. No que
lá está, resta uma ínfima referência à Casa
dos Faróis na forma do telhado.
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O tempora! O mores!
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Bruxelas, Janeiro de 2014
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© Jorge Tavares da Silva
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Nota – Este texto e imagens foram-me enviados pelo Autor,
meu amigo, com a finalidade de vir a ser publicado no Marintimidades. Um hino à Casa
dos Faróis, demolida. Além do mais, também fui frequentadora de um ou outro
bailarico, nesta cave.
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Muito bem escrito. Parabéns ao Jorge T.S., que recordo. Não tinha, mais tarde, um ww azul?
ResponderEliminarO prédio que está no sítio da casa tem uma boa aparência, do melhor que se fez na Costa Nova. Peca por ser demasiado alto, mas infelizmente acontece muito.
Como disse à Ana Maria, procurei comprar a casa, mas além de cara, estava completamente destruída, por ter ficado abandonada. Assim. Jorge, limitei-me a um simpático apartamento no local, com uma apetecível varanda e três frentes de sol. Hoje ´o meu filho que usa.
Obrigada pela excelente prosa. Abraço,
Clara Sacramento.
Olá Clara,
ResponderEliminarO tempo passa e, sem se dar por isso, são dezenas de anos que ficaram para trás.
Um dia, em conversa com a Ana Maria, referi-me a uma fase da minha infância na Costa Nova, mais exactamente na Casa dos Faróis. Assim nasceu o texto que ela aqui publicou.
Todavia, a "nossa praia", foi um elemento extremamente importante na minha vida. A primeira fase foi a referida no texto, a segunda, grosso modo entre 1956/7 e 1961, assistiu ao desabrochar de uma adolescência onde travei conhecimento com outros e outras adolescentes, com idas à Bruxa, bailaricos, discos pedidos à noite na Avenida e, evidentementre, bolachas americanas, quer canudo ou guardanapo?
Seguiu-se uma outra fase de alguns anitos com horizontes diferentes, em Portugal e em Itália.
Já mais tarde, depois de episódios tristemente pidescos voltei esporadicamente, já adulto, a Aveiro,tendo então reatado com alguns amigos e conhecidos da Costa Nova.
E só lá tornei a ir em Setembro de 1974, quando, de regresso do exílio, fui mostrar Portugal à minha mulher, ainda a Costa coincidia com o que guardava na memória.
Uns anos mais tarde, conheci a Ana Maria, então directora do Museu de Ílhavo, com quem, de vez em quando, tenho o prazer de falar e trocar impressões.
A vida que foi passando, sempre aqui em Bruxelas, levou-ms, de mansinho, à esfera europeia, onde, há pouco mais de três anos, pus termo à minha carreira.
Entetanto, entre filhos, netos e amigos, lá vou escrevendo uma linhas, sem passadismo, mas com vagas de ternura por eventos, sítios e passsoas, que foram marcando positivamente a vida que fui levando.
Aquele abraço, Clara.
P.S. Tive vários carros, alguns azuis, mas nenhum VW...
JTS
Jorge:
ResponderEliminarNão me recordava do teu exílio, pensava que tinhas ido estudar e, por causa da guerra, tinhas por lá ficado.
Sim, a Costa Nova é inesquecível. Eu passava a vida no Gilda, o barco dos manos Teles, com o João Batel, a Graça e muitos outros. Só gostava dos barcos e, por vezes dos bailaricos. Claro, também do picadeiro. Mas a minha vida nem sempre foi fácil, teve muitos altos e baixos, familiarmente por causa da vida política agitada do meu pai e da sua morte precoce. Depois, um casamento que não correu bem. Tenho um filho e um neto. Eu e a Ana Maria temos relações familiares muito próximas, como deves saber.
Eu lembro-me de ti, mas não sei de onde. Eras um pouquinho mais velho? Não sei porque me lembrei do carro azul.
Um abraço,
Clara
Pois é, Clara. Exílio e outras desavendas foram o quotidiano de um punhado (importante) de portugueses, de entre os quais o teu pai, figura emblemática por excelência.
ResponderEliminarSoube que tinha falecido, nos primeiros anos da década de setenta, jà na Bélgica, por alguém que estava a par das minhas ligações com Ílhavo, Aveiro e Costa Nova por um lado, e a luta antifascista por outro.
Na realidade, julgo que nos conhecemos já mais crescidinhos, por volta de 66/67, talvez por intermédio da Mimi Mieiros,da Teresa Serra ou da Ana França, já que na fase Costa Nova, tu devias ser muito miúda (eu sou de 1945) e não é dessa época que me lembro de ti.
Como já há mais de dez anos que não vou para essas bandas, estou a pensar dar um salto por aí no Verão, para ver a Ana Maria e outros amigos.
Cordialmnte,
Jorge
Pois, deve ter sido, ou então através do meu namorado e futuro marido, Zé Eduardo (Ançã Regala), falecido há muito, muito tempo, bem como a irmã, Raquel, mais recentemente.
ResponderEliminarHá um moço aqui do nosso tempo, médico, que vive em Bruxelas, mas não me recordo do nome.
Dessa gente da Casa dos Faróis, das fotos reconheço o Barreto e uma das manas Amorim. Eu era amiga da Lurditas, Mimi Mieiro, Ana França.
Vamos ver se a Costa Nova aguenta estas investidas do mar, caso contrário, as nossas pegadas adolescentes ficarão para sempre submersas.
Abraço,
Clara.
Olá Clara,
ResponderEliminarEspero que o Mar não apague as pegadas adolescentes. O rapaz aí de Ílhavo, que conheço bem, é o Carlos Rocha, médico, filho do Elmano. Se vires a Mimi ou a Ana França, dá-lhes um beijinho por mim.
Lembro-me de um Zé Eduardo, que, julgo, tocava viola, mas não sei se era o teu falecido marido.
Bjs,
Jorge