A minha paixão pelo barco moliceiro é francamente conhecida. Após um estudo, de certo modo aturado, sobre o referido barco, desde os anos 70, por que não um breve apontamento sobre a canga vareira, um artefacto que lhe está intimamente ligado?
Vários autores têm evidenciado a semelhança entre a canga vareira e o moliceiro, quer quanto à sua morfologia, quer quanto à decoração.
Na opinião de Luís Chaves, a canga, de frente, lembra o perfil do moliceiro carregado; a carga não se estende a todo o comprimento de proa à ré, ficando avultada a meio, em prisma quadrangular e volumoso. Quando o mastro já é inútil, é apeado e estendido por cima da carga. Assim, o perfil torna-se de arqueado em rectilíneo; a igual distância, com o centro de simetria no mastro ou no seu lugar, a linha recta quebra verticalmente e é, em baixo, continuada pela curva até às pontas enroladas do barco. Talvez este perfil tivesse influenciado a forma da canga.
A canga vareira, imprescindível nas juntas de bois, era utilizada na alagem das redes da arte xávega, em toda a extensão do cordão litoral, desde Espinho à Torreira. A sua infiltração na lavoura explica-se pelo facto das juntas de bois em prestação de serviço de pesca serem, normalmente, propriedade de lavradores das vizinhanças, lavradores esses que, por vezes, se dedicavam também à faina do moliço. A sua adopção no campo, imediatamente pressupunha a proximidade do mar e a alternativa compreensível da sua aplicação em ambos os serviços.
Quer barco, quer canga, complemento do carro de bois, eram ambos alfaias agrícolas, que, muitas vezes, se complementavam. O moliceiro, segundo Raul Brandão, “rapa os cabelos verdes da ria” que o carro de bois descarrega e transporta para os campos.
Descarga de moliço – Anos 80
Para além da sugestão mórfica e da complementaridade de funções, a semelhança entre canga vareira e o moliceiro da zona norte da ria existe a vários níveis:
– geograficamente, o moliceiro e a canga vareira constroem-se nos mesmos locais, nomeadamente, Bunheiro, Pardilhó e Monte (Murtosa).
– decorativamente, painéis de moliceiro e cangas são idênticos pela álacre policromia e pela ingenuidade dos motivos utilizados. As cores são fortes, puras e luminosas: o branco, o vermelho, o azul, o verde, o amarelo, o zarcão (cor-de-laranja) e o rosa, umas de origem, outras manipuladas pelo próprio artista, através de algumas composições.
Quanto à temática, certos motivos são comuns: o vaso florido, o sino-saimão, o escudo português. Os elementos decorativos menores (círculos gravados e ramagens), podem ou não constituir frisos. Na canga, nunca existe o elemento figurativo.
Esta simbiose entre a iconografia do moliceiro e da canga tem sido representada por alguns jugueiros, desde os finais do século XIX.
(Cont.)
1ª Imagem – Arquivo pessoal da autora
Restantes fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho
Ílhavo, 26 de Outubro de 2009
Ana Maria Lopes