Aí, ensarilham-se nas malhas sobrepostas, de onde por mais que esbadanem, não se conseguem esgueirar. E com os esforços que fazem para se libertar, no estertor da morte, ficam cada vez mais emalhadas, ensarilhadas, na rede aérea de três panos.
Depois de dar o tempo suficiente à captura do peixe, o velho pescador, de botas de borracha de cano alto e avental improvisado, começa a alar toda a arte, no sentido exactamente inverso ao da montagem, tendo o cuidado, sobretudo no salto, de unir os dois cabos das tralhas, para não fugir nenhum peixe.
Processo arcaico, imutável, a requerer técnica, jeito e argúcia, que nos dias de hoje só o Ti Manel detém, ainda. Há-de morrer com ele. Santo Deus! Abeira-se da margem para nos deixar e safa a rede, desemalhando o peixe.
A captura não foi brilhante, mas ainda deu para me oferecer dois dos melhores exemplares. Que ia eu fazer às tainhas? Não aprecio o peixe na travessa. Aprecio, sim, entusiasmada, a sua vitalidade, o seu saltear, a sua meia volta no ar quando parece querer despegar e refrescar-se; e depois o cachapuz quando se estatela de encontro à ria, para logo mais adiante ressurgir a esvoaçar, deixando-nos no adivinhar da quantidade de saltos que dá.
Já no quete da bateira...
O espectáculo que tinha acabado de presenciar prendeu-me os sentidos às belas, raras e inesquecíveis imagens, saciando-me a curiosidade. A idade avançada do pescador e a extravagância da arte fizeram com que me detivesse com tanto pormenor, na sua descrição.O Ti Manel já não existe e o saltadouro também não. Morreu com ele, na ria da Costa-Nova.
Que se salve a memória… e se transmita de geração em geração. Não é fácil.
Nota – O Relatório da Ria de Aveiro de 28. Dez. 1912 de Augusto Nobre, Jaime Afreixo e José de Macedo refere que o salto, parreira ou peixeira é talvez o mais engenhoso dos aparelhos de pesca interior. Só se conhece o seu uso na ria de Aveiro, onde foi inventado, haverá meio século, por um pescador de Esgueira, sendo logo adoptado pelos da Murtosa, em cujas mãos se tem conservado quase exclusivamente.
Fotografias – Cedência de Paulo Miguel Godinho
Costa-Nova, 23 de Agosto de 2009
Ana Maria Lopes
E assim chegou ao fim a descrição perfeita de uma das mais engenhosas artes de pescar na ria de Aveiro.
ResponderEliminarMais uma vez os meus parabéns e desejos de muita inspiração e coragem para nos contar mais coisas
da nossa terra.
JR
Bela lição!
ResponderEliminarParabéns
FM
As palavras certas que, com a ajuda das imagens, se transformam num quadro vivo.
ResponderEliminarParabéns.
Bom dia.
ResponderEliminarUm belo exemplo do engenho do homem e de uma vida simples, que ao que parece já ninguém tem hoje em dia. Para muitos homens, o universo de uma Ria basta para se viver e o mundo exterior já é muita coisa. Não é por isso que são pessoas "menores".
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Também não sou apreciador do peixe, mas sou, isso sim, apreciador desta empolgante descrição que me deixou enlevado com tamanha fidedignidade.
ResponderEliminarAguardo, ansioso, pelo próximo tema, que será tão bom ou melhor que este.
Martins
Que boa forma de preservar e divulgar estes conhecimentos tão específicos quanto interessantes. Gostei muito...
ResponderEliminarLMC
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