Desde que me lembro, sempre fui assistindo à entrada dos navios de bacalhau, pelo menos, os pertencentes a Testa & Cunhas, com toda a carga emotiva que acarreta.
Na Meia-laranja, as mulheres, saudosas, ansiosas e adornadas nos seus mais domingueiros trajares, bem arreadas de ouro, esperavam os seus homens, que, na proa do navio, acenavam, igualmente comovidos, e ansiosos por calcar terra firme e por abraçá-las a elas e aos filhos, que, por vezes, ainda nem conheciam. Haviam nascido na sua ausência! Que longos seis meses!
Nesse ano, decidi passar para o lado de lá e ter uma perspectiva diferente da entrada de um navio.
Numa manhã setembrina, de ria calma e envolta numa doce neblina, embarquei no Cais dos Bacalhoeiros na lanchita da Empresa, conduzida por um fiel servidor da casa, o Zé Vicente.
Propunha-me fazer um documentário, filmado, em 8 mm (era o que se usava, então), com a minha maneirinha Bell & Howell.
Tem tudo menos grande qualidade, mas fez já 44 anos e foi filmado com grande ternura e curiosidade. Desculpem, pois, as imperfeições e apreciem os aspectos positivos. Além de não ser “profissional”, ainda tive o azar de ter de fazer a inversão obrigatória do filme, exactamente, no momento em que o Novos Mares se aproximava e nos ultrapassou. Mesmo assim, valeu a pena.
Na viagem para a boca da Barra, passaram, por nós, traineiras, pujantes mercantéis à vela, graciosos e esbeltos moliceiros, quer à vela, quer à vara, a abarrotar com elevadas marés de moliço, bateiras berbigoeiras, para não falar de dragas e navios de carga, que não me despertam tanto a atenção.
O nevoeiro lá fora, adensava, mas, por bombordo, avistava-se, altaneiro, o nosso Farol riscado de vermelho e branco.
Pela frente, o navio, imundo, bem surrado e bem pesado (tinha sido um dos melhores anos de pesca), saúdou a população no seu silvo roufenho e profundo! Já entrou a barra e dirige-se a S. Jacinto. Eis que se lê, à popa: NOVOS MARES – AVEIRO.
Saltei para bordo.
Não tinha olhos para tanto movimento e estrafego!
Os pescadores, já bem lavados, barbeados e aperaltados, aguardavam, pelo convés, que era exíguo, para tanta tralha: sacos de lona das suas roupas, uma golpelha ou goropelha algarvia, barricas que levaram 30 litros de vinho e traziam caras, samos e línguas (a caldeirada dos pescadores), bidões de óleo, gasóleo e óleo de fígado de bacalhau (brrrr!), sessenta e seis dóris atulhados de panas, bancos, ferros, remos, forquetas, etc., distribuídos por dez pilhas, para sessenta e quatro pescadores.
Entrou para bordo o encarregado da Alfândega, que marcava os sacos, um a um, a giz vermelho.
De S. Jacinto, em bateiras, chegavam famílias de pescadores, de lá naturais, para aquele forte abraço entre marido e mulher e entre pais e filhos!
O imediato, à época, Tibério Paradela, junto da escada de portaló dava andamento às diligências necessárias.
Por estibordo do navio, atracaram dois possantes mercantéis, para onde eram arriados, por um sistema de teques, os sacos já inspeccionados. Pertenciam aos pescadores que moravam em localidades cujo acesso era fácil através da ria: Murtosa, Gafanha da Encarnação, Costa-Nova, Vagueira e outras.
O Capitão, António Morais Pascoal, pomposamente fardado, localizado na asa da ponte, controlava todo o movimento do convés, assim como supervisionava manobras e alcançava o horizonte com amplitude.
Chegada a hora conveniente da maré, o rebocador procurou posição e passou ao navio o cabo de reboque.
Começara, para mim, a grande viagem de S. Jacinto até à Gafanha da Nazaré!
Avistam-se as instalações da seca, já parcialmente remodeladas.
Homens, em botes, auxiliam, a atracação do navio, à proa e à popa.
Entretanto, o guarda-livros e auxiliar entram para bordo, para procederem ao pagamento dos salários, de acordo com a informação de pescado previamente fornecida pelo capitão.
No cais, as famílias, que, entretanto se deslocaram da Barra para a Gafanha, esperavam com ansiedade, os seus entes queridos. Ei-los que começam a sair, bem preparados, aos poucos, em botes, normalmente com duas lembranças, uma em cada mão, quase sempre do mesmo género: um Cristo luzente e cintilante para a parede do quarto e uma boneca, bem vistosa, para a sua menina, de quem tinham tantas saudades!
Agradeço ao amigo Tibério Paradela que, gentilmente, me tirou algumas dúvidas, bem como ao Sr. Capitão Pascoal que, com os seus 85 anos, me foi explicando, pacientemente, ao visionar o filme, a sequência das acções. Também consegui proporcionar-lhe uns agradáveis momentos, já que não sabia da existência de tão modesto documentário!
Saboreiem-no, pois, que vale a pena, apesar de alguns evidentes defeitos!
E assim terminou a campanha de 1964 do n/m Novos Mares, com um dos melhores carregamentos!
Filme – Arquivo pessoal da autora
Ílhavo, 1 de Novembro de 2008
Ana Maria Lopes
Já saboreei a descrição e o filme que revi, com gosto. Este escrito, delicioso, oferece-me recordações de tantas entradas do Santo André que presenciei, ou não fosse o meu pai um dos seus tripulantes. Assisti à pressa com que todos queriam saltar para terra. Comi pão branquíssimo com sabor único, que hoje visitou o meu paladar, com muita saudade.
ResponderEliminarObrigado, Dra. Ana Maria.
Continue para regalo de tantos que ainda sentem, com que alegria, estas recordações.
Fernando Martins
Esqueci-me de referir um pormenor. No filme julgo que se vê o rebocador "Vouga" ou "Rio Vouga", que era dirigido, na altura, segundo creio, pelo meu tio Mestre Mário Grilo.
ResponderEliminarFernando Martins
Boa noite.
ResponderEliminarPode dizer que o seu filme é modesto, mas tem por certo muito significado e valor para muita gente. Passa a ter também para mim, pois embora o meu pai só tenha feito a 1ª campanha em 1967, permitiu-me ter uma boa ideia de como era a chegada à Gafanha. Nas muitas voltas que tenho dado em volta deste navio, incluindo a busca dos seus planos, este seu filme ficará como mais uma preciosidade ligada ao passado de pesca do meu pai.
Muitíssimo obrigado por partilhá-lo connosco.
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Bom dia
ResponderEliminarAdorei o filme, os escritos e os comentários à volta do mesmo.
Apeteceu-me postar um escrito sobre um navio que sendo construído em S.Jacinto eu, ainda rapaz, vi sair pela primeira vez a barra. Estou a referir-me ao N/M "Madeirense".
Quiz o destino que anos mais tarde, e por motivos profissionais, me encontrei ligado a esse navio.
Já ele tinha cumprido o seu destino de transportador entre a Madeira e o Continente e chegou a altura do seu abate.
Após longas negociações com as diversas autoridades envolvidas na area marítima o CA da empresa proprietária consegiu que fosse autorizado o seu afundamento para o transformar num recife artificial.
Depois de totalmente esventrad de madeiras e os tanques e maquina sem qualquer vestigios de lubrificantes ou combustivel lá foi o Madeirense repousar nas areias do Porto Santo.
Ficou intacto, aproado às correntes dominantes a descansar como se estivesse em doca seca.
Hoje é um destino de mergulho muito apreciado aqui na região. Tem muitos mergulhadores nacionais e internacionais que aqui se deslocam para ver o que foi o Madeirense.
Senti uma grande emoção na hora do seu afundamento e quando fui aos 30mts de profundidade para o ver.
E ainda ganhei um almocito pois tendo coordenado o seu afundamento garanti que o mesmo ficaria direitinho como que pousado no seu berço natural.
Por esta experiencia ter sido tão entusiasmente, positiva e um sucesso na area de mergulho pergunto: Porque não fazer o mesmo a alguns cascos que vemos abandonados pelos nossos cais?
Será que os navios só têm utilidade enquanto navegam? Será que ecológicamente afundados não serão um polo de atracção turistica? A minha experiencia diz que sim, haja vontade.
para todos Bom tempo Mar e horizonte.
RSM
Boa noite,
ResponderEliminarPegando no comentário de rsaomarcos, recifes artificiais com velhos navios só tem factores positivos a meu ver. Mesmo que depois o turismo não se desenvolva em volta deles, o peixe desenvolve de certeza.
Atentamente,
www.caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt
Como disse Fernando Martins, o escrito está delicioso, e como comenta Fangueiro António, significativo e saudoso para quem tantas vezes assistiu ansioso à chegada à barra e entrada do navio dos seus familiares!
ResponderEliminarBoa Rui!!!
Parabéns pela habilidade como abordaste o assunto do "MADEIRENSE" e deste a conhecer a forma digna de abater uma unidade naval. Pena é que não tenhas incluido imagens do acontecimento ou posteriores.
Cá fica o desafio, mas...
cuidado!!! não deixes outra vez acabar o combustível na "travessa"!!!
JR