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José
Duarte Oliveira
Encontrei,
há cerca de quatro anos, Noémia Ribau, no Museu, para mim, pessoa desconhecida.
Mas,
alguma empatia brotou entre nós que nos levou ao diálogo. A Noémia – afável,
agradável, simpática, de 70 anos, pele lisa e cuidada, olhos azuis cristalinos
e transparentes, da cor do mar, cabelo encaracolado, farto e branco puro, tipo
espuma de vaga na rebentação – parece que tinha alguma mensagem para me passar.
E tinha.
Revelou-me
com uma dor ultrapassada, mas ainda não esquecida, que o pai,
«pescador-especial», morrera no mar, no pesqueiro, tendo desaparecido para
sempre, ele, o bote, o bacalhau
apanhado, em segundos: na campanha de 1952, enquanto contramestre do lugre-motor “Dom Denis”, pertença
da empresa Pascoal & Filhos, Lda. Tinha algumas fotografias (aguçou-se-me o
interesse) e recordava tão forte e vivamente o dia da chegada da notícia, mesmo
nos seus 5 aninhos, que era capaz de pintar um quadro das empolgantes e tristes
cenas, que vivera e a que assistira.
Uma
criança, com duas irmãs mais velhas, marcada sobretudo pelo desgosto de sua
mãe, que acompanhou toda a vida, embiocada em roupas negras como negra não mais
deixou de ser a sua alma. Conversarmos mais – era o nosso objectivo –, mas
naquele dia e àquela hora, não era oportuno.
Vim
para casa, e na minha curiosidade natural, interrogava-me:
–
Como se chamaria o pai, nome completo? Nascido onde?
–
Idade? Cédula marítima de que data?
–
Quem teria sido o capitão do navio “Dom
Denis”, nesse ano, que teria
passado pelo desgosto de perder um homem bom, um bom pescador, um homem novo e
pai de crianças, deixando uma jovem mulher, viúva?
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Procurei
estes elementos junto da sua ficha de inscrição no Grémio e das fichas
biográficas complementares. José Duarte Oliveira, de alcunha Zé Pinto, nasceu na Gafanha da Nazaré, a
2 de Setembro de 1913. Casou com Palmira Janicas Martins em 10 de Janeiro de
1936, sendo possuidor da cédula marítima nº 19.907, passada pela Capitania do
Porto de Aveiro, em 3 de Abril de 1927.
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A
bordo, em pé, de camisa clara, junto à pilha de botes
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Tendo
começado cedo a vida marítima como moço, de 1936 a 1940, inclusive, foi
um óptimo pescador no lugre com motor
“Rainha Santa Izabel”, tendo mudado de 1941, até à
fatídica campanha de 1952, para o lugre
“Dom Denis”, em que foi sempre pescador especial e, contramestre, nos anos
de 45, 49, 51 e 52. «Partiu para o fundo do mar florido», sem retorno, em
Agosto de 1952, com 38 anos.
O
capitão fora, nesse ano, João Fernandes Parracho (o Vitorino), que bem conheci,
ali da Rua Direita.
Um
mês depois, numa terça-feira, a Noémia voltou a procurar-me, para conversarmos
mais demoradamente, tendo-me trazido algumas fotos do pai, que estavam danificadas
na sua maioria pelo bolor do tempo, com excepção de uma, pequenina, que tinha
vestígios de ter andado colada, no interior da amura do navio, junto ao beliche
do pai, como era hábito – ele e a sua Palmira.
Escolhi
as possíveis.
A
Noémia continuou com as suas naturais lamúrias, contando-me que pela Senhora do
Pranto, tinham vindo até à festa, a Ílhavo, onde já constava o acidente fatal
do pai, embora ninguém tivesse coragem de lhes dar a trágica notícia. Davam-se
muito bem com a senhora do capitão, mas…
De
dia em dia, o tempo foi passando e familiares e amigos, na Gafanha d’Aquém,
sentiam-se na obrigação de dar a conhecer à família, tão terrível notícia. E
assim aconteceu. Já todos em redor, por fins de Agosto, estavam preparados para
consolar, amparar e animar, se é que há ânimo possível, nessas condições…
Tum! Tum! Tum!
– bate à porta um tal João dos Bois.
– Abra a porta que o seu home morreu
afogado nas ondas do mar! – Ecoou…
A
Palmira, incrédula, gritara, caíra, desmaiara. Foi-lhe prestada a assistência
possível pelo Sr. Dr. Balseiro (pai). Durante quase um mês, a recém-viúva de um
homem perdido no mar, não vivera, vegetara, semiadormecida, tendo perdido a
fala. Tinha três meninas do seu rico Zé Pinto, para criar. E assim o foi
fazendo, à custa do seu trabalho, ajudas e amor, numa mágoa infindável, mas com
uma força anímica que sempre vai tendo uma mãe, mesmo viúva.
Outro
episódio chocante, ainda em pleno luto – recordou a Noémia – foi a entrega dos
sacos de lona com as roupas de bordo e da tal fotografia do casal, que, na
amura do navio, alimentava o seu sonho de amor. Na altura em que o navio entrou
a barra e atracou no cais da Gafanha, a quem entregar aquelas sobras doridas?
Outra
tormenta – o contacto físico com cada peça de «roipa do seu home» que ela
beijocara, numa dor sem fim! Para não falar na dita fotografia pequenina e
carinhosa, que ainda hoje existe e é testemunho de tão grande amor e de tão
grande perda…
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Na
amura interior do “Dom Denis”, junto ao beliche
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Falou-me
a Noémia dos alvos cabelos encaracolados e de olhos de um azul cristalino, como
o mar, que Bernardo Santareno, não sabia em que livro, narrara um sonho, que só podia ser premonitório.
Não me era estranho, e de volta a casa, agansei-me
aos “Mares do Fim de Mundo”, em que,
rapidamente, localizei o belíssimo texto de Santareno, que passo a memorar: – O Sonho
Corria pelo fundo do mar,
perfeitamente livre, como que alado, respirando sem qualquer esforço: apanhava
flores lindíssimas, jamais admiradas antes, e escolhia conchas, azuis ou
róseas, de formas encantadoramente bizarras. Sentia-se leve e feliz.
E quando, por acaso, se mirou numa
estrela de oiro que, cadente, lhe passava em face do rosto, ficou estupefacto:
era muito mais jovem, agora.
(…) A certa altura, porém, lembrou-se
dos filhos pequeninos e quis levar-lhes as flores e as conchas: tentou por isso
voltar à superfície. Em vão: sempre que experimentara nadar para terra, o mar
tornava-se duro e impenetrável. Angustiado, repetiu a tentativa uma, duas… cem
vezes: impossível. (…) Queria chorar, mas só podia rir. Foi neste momento, no
auge da angústia, que o vigia o veio acordar…
Que sonho mais esquisito! Credo! Deus
nos livre das tentações do demónio. Sempre há cada uma. (…). E logo foi contar
ao Francisco Urze, seu mais íntimo amigo. Foi este último quem agora mo
reproduziu. Oh, que alívio ao acordar…. Livra! Mentiras, sonhos são mentiras.
Vestiu-se. Madrugada. Estava um dia
sereno e belo, um mar doce e sem rugas, logo palhetado por preciosos cristais
solares. Nem vento, nem nevoeiro, Gronelândia, no «Store».
Tempo ideal para a pesca à linha!
Arriados os botes (mais de
cinquenta!), os pescadores lá foram para a faina, cada qual remando para o
pesqueiro preferido, todos eles, no entanto, perto do navio-mãe, o lugre “Dom Denis”. À vista, muito
próxima, a costa nevada.
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“Dom
Denis”
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E o Zé Pinto (chamava-se assim o
homem do sonho) foi também, claro, com os demais. Era o contramestre do navio:
marinheiro sabedor e prudente.
Cerca de uma hora depois da partida,
houve ainda quem visse o seu dóri, já longe, reconhecendo-o pelo verde-malva da
minúscula vela.
Depois… nunca mais.
Pela tarde, fora içada no Dom Denis a
bandeira da chamada, todos, uns após os outros, foram regressando ao navio-mãe.
Todos, menos o contramestre.
Que lhe teria acontecido? Não há
testemunhas, ninguém pode verdadeiramente explicar esta desgraça. O tempo
continuava esplêndido, o mar mais plano que nunca, o céu azul e limpo, o vento
apenas suave.
Então, o “Dom Denis” navegou
em busca do homem, por todas as direcções; lançou, pela telefonia, apelos aos
outros navios portugueses e estrangeiros; fez, desesperadamente, todos os
sinais de chamada… Tudo inútil: o Zé Pinto desaparecera para sempre.
Mas, como?! Estranho naufrágio, este!
Que se teria passado, santo Deus?!
Ninguém sabia. Com um mar assim, bom e ameno, nunca tal acontecera: não havia
memória. Foi como se o barco e o homem, num instante, se tivessem feito em fumo
e brisa; ou em música (…).
Ai, aquele sonho!... O Francisco
Urze, dolorosamente não se cansa de murmurar: Era o aviso, era o anúncio! E eu
penso também que sim, que seria: a morte tinha escolhido o Zé Pinto enquanto
ele dormia: ficara marcado, não lhe podia fugir. Ela é implacável, não perdoa
nem adia – com bom ou mau tempo, com névoa ou com sol, o jovem contramestre do “Dom Denis”, naquele dia, àquela hora, iria
ouvir a música do fundo do mar, colher as suas flores maravilhosas, apanhar as
suas conchas belíssimas…
Trinta
anos volvidos, a sua filha Noémia encontrara o Chico Ramos, contramestre do lugre “Brites”, em Ílhavo, que
lhe confessara que, ao longe, assistira ao afundamento do seu pai… mar chão,
tempo límpido, mas aquela ganância de carregar mais o bote levara-o à morte, por submersão com o peso de mais uns belos
peixes. Estava a dar!.... Terá sido? Faço minhas as suas palavras que dão que
pensar.
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Ílhavo,
20 de Abril de 2021
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Ana Maria Lopes
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