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Cap. David Calão (Ficha do Grémio)
Há em Ílhavo famílias cujo nome logo
denuncia que nelas houve, geracionalmente, «pilhas» de homens do mar. E esta é
uma delas – família Calão.
Que eu tenha conhecido e com alguma
ligação com meu avô materno, pois era seu irmão, o patrono era o Capitão
Francisco dos Santos Calão, de quem o visado de hoje é filho.
David Manuel Mendes Calão, filho, pois, de
Francisco dos Santos Calão e de Maria Oliveira Mendes, nasceu em Ílhavo, em 27
de Julho de 1926, na rua Dr. Samuel Maia, lá bem para o fundo do Arnal, onde
foi criado.
Do casamento com Maria Luísa Pinto Nunes
Guerra, nasceram cinco filhos: duas raparigas, Maria Irene e Maria Luísa e três
rapazes, Francisco Manuel, David Manuel e José Luís Guerra Mendes Calão, tendo,
pelo menos, um deles, o David, vida ligada ao mar.
Capitão já das mais recentes gerações, era
possuidor da cédula marítima nº 25165, passada pela Capitania de Aveiro, em 12
de Dezembro de 1945.
É perfeitamente natural que o mar fosse o grande
objectivo da sua vida profissional, e, nesse sentido, fez a sua primeira viagem
como praticante de piloto (ainda sem curso), na 1ª viagem do ano de 1946, sob o
comando do seu pai, Francisco dos Santos Calão, no já citado e conhecido
primeiro arrastão de pesca lateral, Santa Joana, mandado
construir pela Empresa de Pesca de Aveiro (EPA), na Dinamarca e estreado na
safra de 1936 por João Ventura da Cruz.
David Calão, na safra de 1948, fez a
viagem inaugural, a única do arrastão Santa Mafalda, construído em 1948, para
a EPA, pelo estaleiro Odero Terni Orlando, em Livorno, Itália, como piloto, sob
o comando de António Trindade da Silva Paião (1895-1971).
Retomando o Santa Mafalda no ano de 1950, com duas viagens, exerceu o cargo de
piloto na primeira e o de imediato na segunda, sob o comando do mesmo capitão,
bem como na única viagem do navio, em 1951, nas duas de 1952 e na primeira de
1953.
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Arrastão
São Gonçalinho
na Gafanha da Nazaré
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E eis que lhe foi proporcionada a mudança
de navio, – o São Gonçalinho – do
mesmo armador, Egas Salgueiro. Construção nos Estaleiros de Viana do Castelo, que
o seu pai vigiara em 1946/47 e estreara no ano de 1948. Neste navio fizera, o
«nosso» homem do mar, a segunda viagem de 1953, como imediato, sob o comando de
Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro
(1898-1972), situação que se manteve, durante o ano seguinte. A partir de 1955,
a situação inverteu-se e o Cap. David Calão passou a capitão do «seu São Gonçalinho», com num ritmo de
viagens alucinante, até ao ano de 1966. Apenas não fez a segunda viagem de
1963, tendo sido substituído por António Trindade Grilo Paião (1928-2002).
Neste espaço de tempo, foram seus
imediatos, todos de Ílhavo, Manuel Gonçalves da Silva, Paroleiro, Francisco Manuel Mendes Calão (1961, 62 e 63), seu
irmão, Manuel Alves Mendes (1964 e 65) e Valdemar Aveiro (1966).
Ao todo, entre imediato e capitão serviu-lhe
de «habitat aquático» o São Gonçalinho, durante catorze anos, num
total de 25 viagens, entre 1953 e 1966. Este ritmo vertiginoso só seria conseguido por
um homem trabalhador, dinâmico, sabedor e amante da sua profissão, que o levava
a vencer a saudade da família, durante meses e meses no mar, em prol do
sustento e conforto da mesma.
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Capitão David Calão, a bordo…
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O São
Gonçalinho foi o primeiro arrastão com uma linha de veios e pás
reversíveis, inovação que penalizou frequentemente o capitão com reparações e
alguns dias de estadias em terra, que ele foi ultrapassando sempre.
Nesta mesma década de 60, começaram a
surgir os chamados arrastões de popa, novos tipos de navios com novos
métodos de pesca – o Maria Teixeira
Vilarinho, em 1964, o Santa Isabel,
em 1965 e o Santa Cristina, em 1966,
para a EPA, ambos construídos nos Estaleiros de S. Jacinto.
Fez a viagem inaugural, em 1965, o Santa Isabel, pelas mãos de João
Laruncho de São Marcos (1919-2018).
Em 1967, que grande desafio foi feito ao
«nosso» capitão – o comando deste arrastão
– … e assim aconteceu.
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O arrastão
de popa Santa Isabel. 1965
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Depois de várias e rentáveis viagens,
neste novo navio de arrasto de popa,
em 1967 (três viagens), em 1968 (duas), em 1969 (duas) e em 1970, uma, visto
que na segunda do ano, comandou o navio, Manuel Mendes, o inesperado aconteceu…
Foram seus imediatos Valdemar Aveiro (1967
e 68), António Virgílio (1969, 70 e 71) e seus pilotos, António Manuel Silva
(1967 e 68), Manuel Luís Chuva Machado dos Santos (1969) e José Manuel Maia de
Oliveira, nos restantes, todos de Ílhavo.
A 23 de Abril de 1971, prestes a largar
para Portugal com um carregamento de cerca de vinte mil quintais, segundo
noticia O Ilhavense de 1 de Maio,
perdeu-se no Labrador, por choque com uma ilha de gelo, baixa mas profunda, o arrastão de popa Santa Isabel, belo navio, relativamente novo, pertença da EPA,
salvando-se toda a tripulação, que já vem a caminho. Era seu comandante o
distinto oficial náutico Cap. David Mendes Calão.
A
perda fatídica na Terra Nova do Santa
Isabel provocada por um iceberg só, por milagre, não deixou de luto setenta
famílias de pescadores – é o título da notícia do Jornal do Pescador de Junho de 1971, pp.
41 a 44, de que respigo alguns excertos.
O
drama, pois de drama se tratou, na medida em que se perdeu uma das mais
valiosas unidades da nossa marinha mercante, teve lugar pelas vinte horas do
dia 23 de Abril.
Noite
cerrada, com toda a tripulação a bordo, depois de um longo dia de faina, eis
que um som surdo, proveniente de algo que batera no arrastão, se fez sentir.
Surpresa! Baque! Susto! – não se vislumbravam quaisquer luzes, o silêncio era
total. A verdade dos factos surgiu e o Santa
Isabel estava de água aberta… O seu
destino encontrava-se traçado. Não seria preciso muito tempo para que toda a
tripulação, composta por setenta homens, assistisse, à partida para um mundo
submerso desse navio que era o seu orgulho, impotente para o evitar.
E mais do que o navio, desapareciam,
devorados pelas águas, singelos, mas afectuosos bens pessoais, como uma simples
fotografia de família, de muitos pescadores do nosso litoral.
Não aconteceu que estes homens, muitos,
chefes de família, com bastantes filhos, fossem devorados para sempre. Nem tudo
era drama, mas muito de mal havia sucedido.
O Santa
Isabel já se preparava para dentro de breves dias, iniciar o regresso para
Portugal. Tudo se perdera, mas a vida, essa, salvara-se.
Nesse salvamento, foi de louvar a actuação
do capitão, tripulação e pescadores do Vasco
d’Orey, arrastão da Empresa de
Pescas de Viana, sob o comando de Manuel Machado dos Santos, Praia, de Ílhavo.
A luta pelo salvamento heroico dos seus
semelhantes fora inexcedível, até à «captura» do último homem.
Mal chegaram a bordo, foi-lhes
proporcionado o maior conforto com a ingestão de bebidas fortes, para lhes
restituir o calor de que tanto necessitavam e com a cedência de roupas da
própria tripulação, pois mais fartura não havia… são assim os homens do mar. Por
vezes rudes, mas humanos e amigos do seu amigo. Logo que possível, a tripulação
do Santa Isabel foi dividida entre o Santa
Mafalda e o Santa Cristina,
ambos arrastões da mesma empresa, em
que navegaram até à barra de Aveiro. Se cada um sentiu a seu modo, para o
Capitão David, a perda do «seu navio» nunca mais foi ultrapassada. Constou
mesmo que foi muito difícil convencê-lo a abandonar o navio numa balsa
salva-vidas, já que a sua decisão obstinada era afundar-se com ele. Este
dramático episódio, sempre presente na sua mente, aí durou até ao fim dos seus
dias.
Nesse mesmo Verão de 71, de férias na
Costa Nova com a família, teve um acidente solitário de lancha, em que esta
capotou, ao ter-se baixado, o capitão, para acender o cigarro.
Sói dizer-se que a vida é uma roda que
anda e desanda para qualquer um dos lados. E nesta época, o azar bateu à porta
do Cap. David. A roda resolveu andar para trás. Em fins de Agosto, dia 29, na
sua casa de férias, no 1º andar, voltada para a ria, lá ao norte, nº 108, 1º, da
Avenida Marginal da Costa Nova, desmaiou na banheira, intoxicado por uma fuga
de gás do esquentador. A má notícia espalhou-se entre amigos e correu pela
praia mais célere que a nortada.
Apesar de levado para o hospital com vida,
urgentemente, foi reanimado, mas as lesões no cérebro provocadas pela falta de
oxigénio, deixaram marcas irreversíveis na visão e no controle da fala. Com o andar
dos tempos, foi recuperando, mas nunca mais foi quem era, nem voltou ao activo,
apesar de ir mantendo alguma bonomia.
Ainda muito novo, partiu a 9 de Outubro de
1983, acabando a sua tormenta, com 57 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Aquele maldito iceberg gelara-o para
sempre.
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Segundo declara Valdemar Aveiro (VA) no
seu livro Ecos do Grande Norte
(pp.117 a 120), o Cap. David foi o seu
último capitão, sendo sem dúvida uma figura carismática da terra de Ílhavo e da
pesca do bacalhau.
Ainda
não o conhecia pessoalmente e já ouvia falar dele como um homem independente,
arrojado, que se lançava em aventuras sozinho, sem mendigar a companhia de
ninguém. Se as pescas não eram do seu agrado, abandonava a zona à procura de
melhores resultados – grande marinheiro, que teve a oportunidade de confirmar
pessoalmente.
Como já referido, o Capitão David, em
1967, passou para o comando do Santa
Isabel, navio novo e de arrasto pela
popa, onde este grande capitão mostrou o
seu real valor, quer como Pescador, quer como Marinheiro.
Afável,
calmo, bondoso, bom conversador – assim o retrata
Valdemar Aveiro, de quem foi imediato nos anos de 1966, no São Gonçalinho e de 1967
e 68, no Santa Isabel.
A certa altura da vida, em plena
actividade e na força da vida, foi morar para uma casa alugada esverdeada,
pertença do Sr. Durão, que mais tarde comprou, ainda hoje, uma das mais bonitas
e melhores moradias, logo no início da dita Avenida dos Capitães (e das
primeiras construídas, pelo início dos anos 50), junto ao Pavilhão Desportivo
do Illiabum Clube.
Segundo Valdemar Aveiro, não tendo sido ele o seu primeiro mestre,
foi com ele que mais aprendeu, mais cresceu e ganhou dimensão, tendo-o
preparado para que pudesse enfrentar com êxito, futuros combates.
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Ílhavo,
13 de Dezembro de 2018
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Fotos
– Foto do Grémio cedida pelo MMI e a outra, pela família
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Ana Maria Lopes-